Se
confirmada, vitória de Biden mudará o estado de espírito do mundo
O processo é longo, os resultados demoram a sair, o sistema é intrincado e arcaico. A incerteza o acompanha até as últimas urnas. Ao final, o vitorioso carrega consigo o galardão da legitimidade, dada pelo povo, mas referendada de fato pelos 538 delegados do Colégio Eleitoral. É uma batalha democrática, mesmo que impregnada de seletividade e restrições.
Hoje
em dia, as eleições norte-americanas tornaram-se um show televisionado, seguido
por todos. Têm forte efeito simbólico, repercutem na política internacional,
alteram o humor mundial. Especialmente numa época como a nossa, em que a
democracia está sob o assédio de líderes e movimentos autoritários
(nacionalistas, populistas) em diversos países. Donald Trump é um deles, o que
mais longe levou a corrosão democrática da democracia, quer dizer, a
problematização da democracia mediante a manipulação das regras de um sistema
que se mantém formalmente democrático.
As
eleições de 2020 não foram entre democratas e republicanos, por mais que os
dois partidos tenham sido protagonistas. Tratou-se de uma disputa em torno da
democracia, do seu significado, da sua defesa e valorização ou de sua
desmoralização.
O
caso Trump ainda será objeto de estudos sequenciais. Nunca um presidente
norte-americano agrediu tanto o sistema democrático de seu país, nunca rompeu
tantas regras de conduta, nunca mentiu tão cínica e compulsivamente. Valeu-se
de falcatruas constantes, explorando o ressentimento, o medo e a raiva que se
acumularam nos EUA com a “desindustrialização”, a vida digital, a perda de
força relativa da economia americana diante do avanço implacável do dragão
chinês e da mudança dos termos do comércio internacional. Encontrou à
disposição uma população preparada para a charlatanice, cortada pelo desespero
e pela desilusão, levada pela perda de referências a desconfiar do sistema
democrático e a se atirar nos braços de personagens “heterodoxos”, abertamente
demagógicos. As redes sociais fizeram com que o rastilho se espalhasse e
adquirisse status de verdade.
O
personalismo populista e raivoso de Trump, sua agressividade permanente,
mobilizou parte importante dos norte-americanos. Apesar de tudo – a resposta
pífia à pandemia, as mentiras, o desprezo pela vida, o abandono do meio
ambiente, o egocentrismo narcísico, os maus tratos com imigrantes, o racismo, a
misoginia explícita – ele conseguiu conquistar mais 4 milhões de votos quando
comparado com as eleições de 2016. Tem milhões de seguidores no Twitter, no
Facebook e no Instagram. É um poder de fogo não desprezível, que lança
torpedos tóxicos a cada minuto, minando a confiança dos cidadãos nas
instituições democráticas.
Chega
a impressionar que tal torrente de pessoas tenha aderido a uma plataforma tão
mesquinha e reacionária.
Se
confirmada, a vitória do democrata Joe Biden mudará o estado de espírito do
mundo, impulsionará uma troca de oxigênio, afetará o modo como os cidadãos
enxergam a democracia. O movimento em favor de uma internacional de
extrema-direita, dita “conservadora”, perderá gás para se viabilizar. Depois do
descaso e do reacionarismo antidemocrático de Trump, poderá haver novamente
política democrática. Mas nada será automático. Primeiro porque os EUA estão
polarizados de cima a baixo. Segundo, porque a democracia norte-americana
enveredou por uma senda enviesada, torta, que distanciou o povo das
instituições e da confiança nos procedimentos democráticos – uma senda que
permanecerá aberta mesmo com Trump derrotado. Muito trabalho terá de ser feito
para repor as coisas no lugar, abrindo espaços para as novas gerações, os
movimentos de contestação e antirracistas, as mulheres. O momento pede um
esforço articulado para neutralizar o populismo e repor a confiança dos
cidadãos na política democrática. Sistemas, afinal, precisam saber se atualizar
e cuidar de suas válvulas de escapa, para que não se inviabilizem quando as
águas subirem e o vapor aumentar.
Os
EUA são uma democracia mais imperfeita do que se imagina. Seu sistema político
foi desenhado para beneficiar certos grupos da população mais do que outros, os
estados em detrimento do poder federal. Tem um corte oligárquico acentuado.
Sempre houve, por exemplo, manobras para dificultar o voto dos mais pobres, dos
negros, dos menos instruídos. O próprio sistema é elitista, os votos populares
não pesam como deveriam, os delegados ao Colégio Eleitoral são escolhidos de
forma restrita. Com o trumpismo, o quadro piorou. O movimento conservador atual
maltrata os fundamentos da democracia e mais recentemente passou não só a
restringir a votação e a corromper a lógica política, como a judicializar o
processo democrático, agindo em nome de um projeto que hostiliza a ideia de
justeza das escolhas populares, que precisam ser acatadas. Como se vê nas
eleições deste ano, faz-se o possível para roubar legitimidade dos resultados
eleitorais.
A
judicialização não é exclusividade norte-americana. Está instalada no mundo,
reflete a crise da política em que se vive. Não é comum, porém, que se ponha em
xeque a lisura das eleições ou que se as leve a decisões judiciais. Governantes
autoritários e de extrema-direita é que costumam fazer isso. Bolsonaro mesmo,
no Brasil, vive dizendo que teria havido fraude na sua própria eleição em 2018.
A extrema-direita faz uso intenso e sistemático da deslegitimação dos processos
políticos. Levanta suspeitas, faz acusações e ameaças para que se possa
confundir e assustar os eleitores. A ideia é desconstruir a democracia liberal,
implodir e manipular as regras e os procedimentos democráticos. É uma espécie
de “golpe branco”, que interdita o diálogo, o pluralismo, a vigência de
direitos e políticas sociais. Tudo contra o “sistema”, mas por dentro
dele, usando-o contra a democracia.
O
discurso de Trump na noite de 05/11, no qual ele acusou os democratas de
estarem inventando “votos ilegais” para “roubar as eleições”, foi uma
demonstração clara disso. Uma admissão dissimulada de derrota para o “sistema”.
A
derrota de Trump não será o fim do trumpismo, que se enraizou na sociedade
norte-americana. Será preciso acompanhar para ver como ela repercutirá no
Partido Republicano e como será processada pela população. Perde a pessoa, não
necessariamente o movimento por ele representado e por ele ativado. Também não
é um recado a governantes que com ele se alinharam e que ajudaram a incensá-lo.
Mas é uma indicação clara de que enquanto houver democracia, regras do jogo e
eleições competitivas, a extrema-direita não poderá se proclamar dona do
universo.
A
presidência Biden não terá impacto imediato no Brasil, sobretudo porque o
governo Bolsonaro agarrou-se ideologicamente a Trump e optou por seguir uma
política externa obscurantista, de isolamento e auto-exclusão das negociações
multilaterais. O País deixou de ter voz ativa no cenário internacional. O
governo brasileiro poderá optar pelo aprofundamento da condição de “Estado-pária”,
manter-se indiferente ao mundo, numa espécie de suicídio nacional. Biden é um
democrata pragmático e que seguirá a via diplomática. Deverá, porém, exercer
pressões não desprezíveis sobre a política ambiental brasileira e levar o
ministério de Relações Exteriores a corrigir o discurso e buscar um
realinhamento. Poderá contribuir para mostrar a farsa que o bolsonarismo montou
no País.
A
vitória democrata nos EUA não é boa notícia para Bolsonaro. Mas poderá ser
ótima para o Brasil.
Terá
impacto sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2022? É difícil dizer,
há dois anos de distância e sem considerar os resultados das eleições
municipais de 2020. Com a derrota de Trump, o bolsonarismo tenderá a perder
parte da “narrativa” e sofrer algum abalo; as correntes democráticas ganharão
um fôlego adicional e serão instigadas a procurar maior unidade e coordenação.
Mas tudo continuará dependendo das políticas que o governo vier a praticar até
2022 e da capacidade que tiverem os democratas brasileiros de avançarem de fato
em termos de articulação. Sem que se forme uma rede sólida de
entendimentos unindo liberais, conservadores democráticos, socialistas e
socialdemocratas o processo político seguirá curso errático e tenderá a se
inclinar em sentido não democrático.
Agora,
é preciso esperar o fechamento completo das urnas, o desfecho dos
questionamentos judiciais e a posse do novo presidente.
Bolsonaro
está obrigado a telefonar para Biden e lhe desejar sorte. O presidente
brasileiro, porém, não é dado a tais cordialidades, é mais tosco e bruto. Fará
algo protocolar, mas por baixo do pano deverá mergulhar na nostalgia de um
tempo em que podia se vangloriar de ser “amigo de Trump”.
*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp
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