Guinada
dos EUA é chance de livrar Itamaraty do ranço ideológico
Os Estados Unidos contam
seus votos em ritmo de tartaruga, enquanto o mundo decora seus Estados e
condados e aprende sobre seu complicado sistema
eleitoral. Trata-se, para os países, de uma oportunidade de
projetar a nova ordem mundial, e se preparar. O Brasil deveria estar nessa
fase, não estivessem os responsáveis pela nossa política externa de luto pela
confirmação da derrota do amigo Donald Trump.
A
troca da guarda na Casa Branca deveria ser um alerta eloquente para o
Itamaraty. Não vai mais adiantar se contentar com migalhas de atenção do “primo
rico” ao “primo pobre”, com a família presidencial satisfeita em ser recebida
para um tapinha nas costas.
Os democratas são conhecidos por adotar políticas protecionistas quando estão no poder. Com o republicano Trump não foi diferente nessa seara, bem sabemos. Então, nos obstáculos ao aço e alumínio brasileiros e ao jogo duro com etanol e commodities agrícolas pouco deve mudar.
Mas
existe uma boa chance de a relação azedar em outras plagas, seja por uma reação
política dos democratas aos excessos de torcida brazuca pelo adversário, seja
pela mudança de discurso dos EUA no campo da política ambiental.
Joe
Biden já deixou claras as
restrições à maneira como o governo de Jair Bolsonaro
trata os desmates e as queimadas na Amazônia, e os recuos brasileiros no
comprometimento com metas climáticas, por exemplo.
Acenou
com a ideia de constituir um novo fundo para a Amazônia, desde que mediante
contrapartidas do governo brasileiro com políticas de preservação da floresta e
fiscalização efetiva do avanço de atividades econômicas clandestinas na região.
Ainda
entregue à paixão trumpista e imbuídos da crença mística de que ele venceria,
não só o Itamaraty de Ernesto Araújo como o Meio Ambiente de Ricardo Salles se
apressaram em recusar o dinheiro e dizer que quem manda aqui somos nós.
O
prenúncio das relações entre os dois países com esse time dos terraplanistas
ideológicos à frente é o pior possível. É por isso que, se fosse minimamente
prático e racional, Jair Bolsonaro deveria considerar seriamente a
possibilidade de trocar as peças no Ministério das Relações Exteriores (no Meio
Ambiente não há nem o que falar, dado o desastre continuado que a presença de
Salles provoca).
Um
breve retrospecto do “legado” de Araújo, um diplomata obscuro até ser pinçado
por Bolsonaro dado a seu fervor olavista, já seria suficiente para ele levar um
bilhete azul num reality-show como O Aprendiz, do ídolo Trump.
Araújo
se colocou à frente da tentativa de tirar Nicolás Maduro da presidência da
Venezuela, e o Brasil foi um dos primeiros a reconhecer Juan Guaidó como “presidente
autoproclamado”. Quase dois anos depois, Maduro se diverte
com as agruras de Trump e não arreda pé da ditadura que impôs aos venezuelanos.
Sob o comando do chanceler, o Brasil também torceu nas eleições da Argentina e
da Bolívia e no plebiscito do Chile, sempre levando de 7 a 1.
Na
questão do Oriente Médio, o clã Bolsonaro e seu fiel representante no Itamaraty
também fizeram balbúrdia à toa: Benjamin Netanyahu, outro “parça” do Jair,
enfrenta contestações internas por acusações de corrupção enquanto se fia nos
acordos de paz costurados com a ajuda de Trump para se manter como
primeiro-ministro de Israel. Anunciamos com estardalhaço uma mudança de
embaixada que nunca se efetivou e vamos ficar falando sozinhos, agora que Trump
está de saída. Para quê? Absolutamente nada.
É hora de devolver Araújo à sua carreira obscura e o Itamaraty a alguma racionalidade, que é a tradição da nossa antes reputada diplomacia. Mas esperar algo assim de Bolsonaro é como acreditar que Trump fará uma transição decente e democrática para Biden: não vai rolar.
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