Não há possibilidade de escrever nem mesmo uma linha sobre política que não carregue consigo a alta tensão elétrica que nos rodeia e angustia. A atmosfera pesada em que temos vivido não se dissipará com o provável resultado favorável a Joe Biden nas eleições norte-americanas, e não só por causa do arsenal de chicanas que são o elemento vital de personagens como Donald Trump. Mais do que isso, a direita subversiva no poder – não podemos esquecer nunca que há outras modalidades de direita, que aderem aos valores constitucionais e, por isso, são participantes com todos os títulos do jogo democrático – sempre deixa como herança um terreno deliberadamente minado; e, como se sabe, minas explodem muito tempo depois de terem sido enterradas, estropiando e matando aleatoriamente. Continuaremos, por isso, a conviver com o perigo por tempo indeterminado.
O
caso norte-americano é, na prática, um exemplo de manual, pronto para ser
aplicado, ou reiterado ainda mais fanaticamente, em várias partes do mundo. Por
mais que Trump e o Partido Republicano, remodelado ao seu feitio, tenham obtido
resultados não previstos pela generalidade das pesquisas, o fato é que
essencialmente lidamos com um líder e um agrupamento de vocação “minoritária”.
Maiorias eleitorais, se e quando acontecerem, serão conquistadas a golpes
publicitários, manipulação nas redes sociais, difusão organizada de fake
news, tudo voltado para a exploração de medos e paranoias coletivas. Não se faz
nenhum segredo quanto a isso.
Nunca
é muito difícil achar bodes expiatórios contra os quais mobilizar
artificialmente eventuais maiorias: a partir do judeu, o “outro” do Ocidente
por excelência, podem-se inventar variados inimigos da raça superior ou da
pátria excepcional. Houve um tempo, por exemplo, em que judeus e bolcheviques
se misturavam e viravam alvo deste tipo doentio de imaginação; mesmo hoje, por
trás dos tais “comunoglobalistas”, pode-se entrever a cauda repugnante do velho
antissemitismo. E, como estamos no terreno resvaladiço do engodo, também não é
complicado canalizar o ódio e o desprezo para outros portadores de estigma –
para o imigrante, por exemplo, inclusive o de origem islâmica. Não se peça
coerência e racionalidade ao moderno populismo de extrema direita: a linguagem
do ódio é o seu meio, o objeto dela pode variar amplamente ao sabor do acaso.
Empregada
como método, esta linguagem tem como resultado a regressão intelectual de
amplas camadas da população e a consequente degradação da esfera pública. O que
se busca é romper o nexo virtuoso entre participação e conhecimento, democracia
e ciência, política e cultura. Seitas como QAnon, especializadas em caçar
supostos pedófilos entre opositores políticos e até líderes religiosos,
aparecem ruidosamente em cena, reivindicando voz e representação parlamentar.
Para não falar, ainda no caso norte-americano, de milícias tão fortemente
armadas que tornaram há quase duas décadas o “terrorismo doméstico” uma ameaça
muito mais real e presente do que o extremismo jihadista ou qualquer outro
extremismo.
Não
é possível nos determos aqui nas vertiginosas mudanças “estruturais” que abalam
as sociedades modernas e que, “em última análise”, como talvez ainda se possa
dizer, condicionam fenômenos como os brevemente apontados. É inteiramente
certo, porém, que estes últimos obedecem a uma dinâmica própria e gozam de
ampla autonomia. É no contexto deles que vastas parcelas da população se
mobilizam, muitas conjunturas eleitorais se definem, dificuldades econômicas e
medos existenciais encontram uma explicação qualquer, por mais torta ou
equívoca que seja.
O conservadorismo
revolucionário – valha-nos o oxímoro – explora e aprofunda tais
dificuldades; por definição, não pretende governar democraticamente os
conflitos ou buscar alguma forma de recomposição social, mas sim afirmar um
poder autocrático por sobre sociedades profundamente divididas ou mesmo
dilaceradas em razão de situações agudamente críticas. Sequer uma circunstância
pandêmica, como a que vivemos, “comove” este tipo de poder. A máquina econômica
tem de seguir adiante inapelavelmente, como se não houvesse nada ao redor, e
isso é tudo.
Se
há algum consolo no drama que nos afeta, é que, pelo menos num plano mais
imediato, não há maiores dúvidas para o diagnóstico: a crise do nosso tempo
está toda contida na oposição entre democracia política e subversão de direita
(bem entendido, a “direita revolucionária”). Neste sentido, os democratas
americanos, até o momento, agiram magnificamente em meio às dificuldades
sabidas. Bem verdade que, dado o bipartidarismo vigente naquele país, a
montagem da amplíssima frente necessária para barrar a reeleição de Trump
constituiu um assunto interno dos próprios democratas, o que em tese terá
facilitado suas ações ao longo da campanha pré-eleitoral.
O
resultado alcançado diz muito: Joe Biden e Kamala Harris não são um mero biombo
atrás do qual se escondem perigosos socialistas e comunistas, mas, antes, a
expressão de um centro forte e pragmático, capaz de atrair os
republicanos tradicionais que não se submeteram a Trump. E desta vez, ao
contrário de 2016, a própria esquerda partidária, representada entre outros por
Bernie Sanders, parece ter entendido a dimensão da aposta em jogo: sem ocupar o
centro político, só pode haver proposições virulentas e minoritárias, cujo
método de ação é o caos, a demagogia, a manipulação. Em suma, só pode haver, e
nos seja perdoada nova expressão paradoxal, leninismos de esquerda e de
direita, todos os dois muito aquém dos requisitos da política contemporânea e
portadores de soluções autoritárias.
Vencer
eleitoralmente é, pois, a tarefa imediata rumo à recuperação de um mínimo de
equilíbrio e sanidade. Desarmar as minas retardatárias do trumpismo e seus
avatares mundo afora é outra história, muito mais complexa, que nos ocupará por
muito tempo nos Estados Unidos e nos outros países do Ocidente político, o que
inclui obviamente o Brasil.
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição). Dirige, nesta Fundação, a coleção Brasil & Itália, com duas dezenas de livros publicados. Sua atividade de tradutor tem como eixo difundir a cultura democrática e socialista italiana. Há 10 anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo, uma colaboração de que resultou o volume Reformismo de esquerda e democracia política (Verbena & FAP, 2018).
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