Correio Braziliense
O silêncio de Bolsonaro em relação à vitória de
Lula e sua solidariedade aos manifestantes, no lacônico pronunciamento, também
se enquadra na categoria do ‘jus esperneandis’
No mundo jurídico, o equilíbrio entre a
existência de recursos e o retardamento de decisões judiciais é uma questão
polêmica e sempre atual, porque estão em jogo a segurança jurídica e a
efetividade da justiça. A tensão ocorre entre o inconformismo psicológico
natural de quem perde a demanda e o atraso na solução da disputa, mas evita que
erros sejam perpetuados em razão da suposta infalibilidade do julgador. A
expressão jus esperneandis vem daí. No jargão jurídico, é um falso latinismo,
que alude ao espernear de uma criança inconformada com uma ordem dos pais. O
excesso de recursos às decisões, porém, pode ser classificado como litigância de
má-fé.
A analogia serve para avaliar as manifestações dos partidários do presidente Jair Bolsonaro às portas dos quarteis realizadas ontem. Foram protestos claramente antidemocráticos, que contestavam os resultados das urnas de domingo, quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente da República pela terceira vez. Não aceitar o resultado oficial das eleições e até dele recorrer é um direito eleitoral garantido, mas o presidente Jair Bolsonaro não o fez. Em qualquer caso, a decisão final caberia à Justiça, a mesma que proclamou o resultado das urnas. Entretanto, conclamar os militares a intervirem na vida política, rasgarem a Constituição e manterem Bolsonaro no poder pela força é crime. Ou seja, os protestos foram pacíficos, mas suas intenções são criminosas.
Em se tratando de uma eleição tão
disputada, de um cenário tão polarizado e de um resultado muito apertado,
porém, os protestos podem ser considerados um jus espernandis de militantes
bolsonaristas inconformados com a derrota. Não é bem o caso dos bloqueios
feitos por caminhoneiros nas estradas, que exigiram uma enérgica intervenção do
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, e ações
repressivas da maioria dos governadores, inclusive os aliados de Bolsonaro.
Entretanto, houve uma sucessão encadeada de ações de caráter nacional desde o
dia das eleições que sinaliza a existência de uma coordenação política entre os
setores envolvidos e que precisa ser investigada, sobretudo se os protestos se
prolongarem além do que seria compreensível.
O fato de Polícia Rodoviária federal (PRF)
e a Polícia Militar, em muitos estados, terem sido excessivamente operacionais
no dia da eleição, retardando o acesso de eleitores às seções eleitorais, e
absurdamente omissas no dia seguinte às eleições, no sentido de coibir os
bloqueios de estradas de caminhoneiros, não passou despercebido de ninguém. As
manifestações de ontem deram sequência a essas ações, somente não coincidindo
porque os bloqueios foram dissolvidos pelas autoridades constituídas.
O silêncio de Bolsonaro em relação à
vitória de Lula e sua solidariedade aos manifestantes, no lacônico
pronunciamento que fez na terça-feira, também se enquadra na categoria do “jus
esperneandis”, mas seu envolvimento ou omissão na continuidade desse tipo de
protestos daqui até a posse do novo presidente eleitora caracterizariam uma
conspiração. Até as emas do Palácio do Alvorada sabem que Bolsonaro não confia
nas urnas eletrônicas e tem a intenção de fazer uma oposição sistemática e
implacável ao novo governo, em nome dos 58 milhões de eleitores que gostariam
que permanecesse no governo.
Ampla coalizão
Essa não é uma situação trivial, porque o novo presidente eleito, Luiz Inácio
Lula da Silva, enfrentará uma oposição muito forte no Congresso e uma correlação
de forças na sociedade que tende a se alterar na medida em que as expectativas
sobre suas promessas de campanha forem frustradas. É meio inevitável um período
difícil de governabilidade, com um governo em minoria no Congresso e com baixa
aprovação na opinião pública.
Nesse aspecto, Lula parece ter se espelhado
na experiência do governo Dilma Rousseff. Os problemas da ex-presidente da
República com sua base começaram nos bastidores do PT, quando anunciou que
faria uma “faxina” no governo, e se ampliaram logo na primeira reunião de sua
coordenação de governo, quando deixou de fora do seu estado-maior o então
vice-presidente Michel Temer (MDB). De certa forma, a indicação do
vice-presidente Geraldo Alckmin para coordenar a equipe de transição do governo
revela a intenção de formar uma ampla coalizão de governo, com efetivo
compartilhamento do poder.
Há uma realidade política nesse momento de
transição que precisa ser devidamente considerada: assim como o bolsonarismo
raiz não tem força para manter coesa a base eleitoral de Bolsonaro, que tende a
se desagregar com a derrota, o petismo sozinho também não tem força para manter
Lula no poder, o que é uma lição do impeachment da presidente Dilma Rousseff
que precisa ser bem assimilada. Lula deve ampliar seu governo a ponto de
incorporar setores do atual governo que estão disposto a participar da nova
base governista no Congresso.
O presidente do PP, Ciro Nogueira, ministro
da Casa Civil, contraface de Alckmin no atual governo para efeito da transição
administrativa, não é apenas um interlocutor burocrático, é um articulador
político que joga junto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
candidato à reeleição na próxima legislatura. Lula não pode repetir o erro de
Dilma Rousseff no episódio da eleição de Eduardo Cunha (MDB-RJ) à Presidência
da Câmara. Está em curso uma operação política muito complexa, que pode
garantir ou não a estabilidade política do governo Lula nos dois primeiros anos
de mandato.
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