INFORMAÇÃO E FICHA SUJA
Cláudio Gonçalves Couto
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) deu início ontem à divulgação em seu site ( www.amb.com.br ) dos nomes dos candidatos que respondem a processos na Justiça. Já há algum tempo a organização não governamental Transparência Brasil também iniciou a divulgação de uma relação de parlamentares de casas legislativas dos três níveis de governo que respondem a processos . Em ambos os casos nota-se uma cautela na utilização dos termos para designar aqueles cujos nomes serão listados. A AMB fala em "candidatos que respondem a processo na Justiça, de origem criminal ou eleitoral", enquanto a Transparência fala em "citados na Justiça e tribunais de contas", ressaltando que se trata apenas de ocorrências já em segunda instância e excluindo litígios de natureza privada e crimes contra a honra - no primeiro caso porque são irrelevantes para o desempenho da função pública, no segundo porque políticos são muito comumente processados por este tipo de coisa.
Comentando a iniciativa da AMB, o deputado Paulo Maluf, por meio de sua assessoria, afirmou que "juízes não devem se meter em política" - informou ontem o UOL. O deputado quase tem razão. De fato, juízes não devem - no exercício do cargo - atuar politicamente, seja mediante decisões, seja por manifestações públicas que ensejem uma interferência do Judiciário no processo de competição política. O mesmo não se pode dizer, contudo, de uma associação de classe - como é o caso da AMB. Neste caso, a atuação do órgão não expressa a posição individual deste ou daquele juiz e, portanto, não enseja o entendimento de que seu posicionamento vá influenciar decisões institucionais de entes estatais, como são os tribunais. Portanto, se os juízes gostariam de manifestarem-se politicamente como cidadãos, contudo sem violar o resguardo funcional que o cargo lhes impõe, encontraram na AMB um instrumento adequado. Por isto, o queixume do deputado Maluf parte de um princípio correto, mas é inadequado para o caso específico agora em voga.
Ficha suja é diferente de direito de informação
O que podemos perguntar é porque esse tipo de iniciativa parte de uma associação de juízes. Ironicamente, pode-se dizer que as razões para isto não são muito diferentes daquelas que podem nos auxiliar a compreender o porquê da intromissão do Judiciário em assuntos tipicamente políticos. Esta intromissão (analisada por Vitor Emanuel Marchetti Ferraz Jr. em tese de doutoramento em ciência política, recentemente defendida na PUC-SP) pode ser compreendida, dentre outras razões, pelo amplo espaço deixado vazio pela classe política na regulamentação do processo de competição entre partidos e lideranças. A omissão de nossa classe política para combater os descalabros morais e mesmo legais cometidos por alguns de seus membros ensejou a insatisfação de amplos setores da sociedade com a condução dos negócios públicos. Essa insatisfação assumiu a forma de uma demanda insatisfeita - e uma vez que não surgiu a possibilidade de que fosse satisfeita pela classe política, abriu-se o espaço para que outros atores entrassem em cena - dentre eles, os juízes. Como diz o adágio popular: o cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta.
Uma parcela dessa abertura de porta se dá diretamente pelos partidos políticos. Seriam eles os primeiros a ter a possibilidade de filtrar as candidaturas - oferecendo aos eleitores apenas postulantes de indubitável conduta. Neste caso, o veto ao candidato não teria de ter qualquer tipo de motivação judicial, bastando uma avaliação política da conveniência ou não de aceitar que cidadãos sob suspeição postulem um cargo público. Mas é difícil esperar dos partidos esse tipo de ação se alguns deles, em vez de reduzir o poder de lideranças sob suspeição, preferem guindá-las a postos tão elevados como a presidência da agremiação - é esse o caso do PTB, que reconduziu Roberto Jefferson à presidência do partido mesmo depois deste confessar ter cometido ilícitos por ocasião do imbróglio do "mensalão". Outro caso emblemático é o dos irmãos, deputado estadual e vereador, presos ontem no Rio de Janeiro. Ambos foram expulsos da polícia civil por vínculos conhecidos com milícias armadas. Pode-se questionar porque então seus partidos, DEM e PMDB, optaram por ceder-lhes a legenda.
Mas não são apenas os partidos que deixam de fechar as portas, impedindo que estranhos "se metam em política", nos termos do deputado Maluf. Também os parlamentares deixam de tomar providências. Deixaram de tomá-las repetidamente por ocasião dos últimos escândalos que afetaram o Congresso - não só ao deixar impunes seus pares, mas também ao não aprimorar as instituições. Com isto abrem espaço para que atores normalmente estranhos à política nela interfiram - e pior, façam-no gozando de legitimidade, ainda que não se trate de uma legitimação propriamente democrática. Noutros termos, se a percepção que o corpo de cidadãos tem é de que os políticos nada fazem para disciplinar seu meio, passa a não apenas aceitar, mas exigir, que outros tomem providências, mesmo que essas providências se dêem ao arrepio da lei e do respeito aos direitos de cidadania. Num cenário de impunidade e ausência de instrumentos de resguardo do respeito à coisa pública, linchamentos (ainda que não propriamente físicos, mas morais) começam a se mostrar atraentes para muitos.
Um exemplo deste tipo de linchamento é o uso que boa parte da imprensa vem fazendo da expressão "lista suja" ou "ficha suja" para se referir àqueles que constam das relações divulgadas por órgãos como a AMB e a Transparência Brasil. Ora, como os ali relacionados respondem a processos que ainda não transitaram em julgado, permanecem - até sentença em contrário - apenas como "supostos culpados", ou "suspeitos". O problema é que a pecha da "ficha suja" pode provocar danos irreparáveis a muitos que ainda têm o direito de defender-se e provar sua inocência. Portanto, embora a divulgação de informações sobre a situação judicial dos candidatos seja algo desejável numa democracia (quanto mais transparência melhor), é preciso ter cautela na qualificação que se dá a essas pessoas. Falar em "ficha suja" é, certamente, impróprio.
Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, às quartas-feiras, Rosângela Bittar, está em férias
Cláudio Gonçalves Couto
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) deu início ontem à divulgação em seu site ( www.amb.com.br ) dos nomes dos candidatos que respondem a processos na Justiça. Já há algum tempo a organização não governamental Transparência Brasil também iniciou a divulgação de uma relação de parlamentares de casas legislativas dos três níveis de governo que respondem a processos . Em ambos os casos nota-se uma cautela na utilização dos termos para designar aqueles cujos nomes serão listados. A AMB fala em "candidatos que respondem a processo na Justiça, de origem criminal ou eleitoral", enquanto a Transparência fala em "citados na Justiça e tribunais de contas", ressaltando que se trata apenas de ocorrências já em segunda instância e excluindo litígios de natureza privada e crimes contra a honra - no primeiro caso porque são irrelevantes para o desempenho da função pública, no segundo porque políticos são muito comumente processados por este tipo de coisa.
Comentando a iniciativa da AMB, o deputado Paulo Maluf, por meio de sua assessoria, afirmou que "juízes não devem se meter em política" - informou ontem o UOL. O deputado quase tem razão. De fato, juízes não devem - no exercício do cargo - atuar politicamente, seja mediante decisões, seja por manifestações públicas que ensejem uma interferência do Judiciário no processo de competição política. O mesmo não se pode dizer, contudo, de uma associação de classe - como é o caso da AMB. Neste caso, a atuação do órgão não expressa a posição individual deste ou daquele juiz e, portanto, não enseja o entendimento de que seu posicionamento vá influenciar decisões institucionais de entes estatais, como são os tribunais. Portanto, se os juízes gostariam de manifestarem-se politicamente como cidadãos, contudo sem violar o resguardo funcional que o cargo lhes impõe, encontraram na AMB um instrumento adequado. Por isto, o queixume do deputado Maluf parte de um princípio correto, mas é inadequado para o caso específico agora em voga.
Ficha suja é diferente de direito de informação
O que podemos perguntar é porque esse tipo de iniciativa parte de uma associação de juízes. Ironicamente, pode-se dizer que as razões para isto não são muito diferentes daquelas que podem nos auxiliar a compreender o porquê da intromissão do Judiciário em assuntos tipicamente políticos. Esta intromissão (analisada por Vitor Emanuel Marchetti Ferraz Jr. em tese de doutoramento em ciência política, recentemente defendida na PUC-SP) pode ser compreendida, dentre outras razões, pelo amplo espaço deixado vazio pela classe política na regulamentação do processo de competição entre partidos e lideranças. A omissão de nossa classe política para combater os descalabros morais e mesmo legais cometidos por alguns de seus membros ensejou a insatisfação de amplos setores da sociedade com a condução dos negócios públicos. Essa insatisfação assumiu a forma de uma demanda insatisfeita - e uma vez que não surgiu a possibilidade de que fosse satisfeita pela classe política, abriu-se o espaço para que outros atores entrassem em cena - dentre eles, os juízes. Como diz o adágio popular: o cachorro entrou na igreja porque a porta estava aberta.
Uma parcela dessa abertura de porta se dá diretamente pelos partidos políticos. Seriam eles os primeiros a ter a possibilidade de filtrar as candidaturas - oferecendo aos eleitores apenas postulantes de indubitável conduta. Neste caso, o veto ao candidato não teria de ter qualquer tipo de motivação judicial, bastando uma avaliação política da conveniência ou não de aceitar que cidadãos sob suspeição postulem um cargo público. Mas é difícil esperar dos partidos esse tipo de ação se alguns deles, em vez de reduzir o poder de lideranças sob suspeição, preferem guindá-las a postos tão elevados como a presidência da agremiação - é esse o caso do PTB, que reconduziu Roberto Jefferson à presidência do partido mesmo depois deste confessar ter cometido ilícitos por ocasião do imbróglio do "mensalão". Outro caso emblemático é o dos irmãos, deputado estadual e vereador, presos ontem no Rio de Janeiro. Ambos foram expulsos da polícia civil por vínculos conhecidos com milícias armadas. Pode-se questionar porque então seus partidos, DEM e PMDB, optaram por ceder-lhes a legenda.
Mas não são apenas os partidos que deixam de fechar as portas, impedindo que estranhos "se metam em política", nos termos do deputado Maluf. Também os parlamentares deixam de tomar providências. Deixaram de tomá-las repetidamente por ocasião dos últimos escândalos que afetaram o Congresso - não só ao deixar impunes seus pares, mas também ao não aprimorar as instituições. Com isto abrem espaço para que atores normalmente estranhos à política nela interfiram - e pior, façam-no gozando de legitimidade, ainda que não se trate de uma legitimação propriamente democrática. Noutros termos, se a percepção que o corpo de cidadãos tem é de que os políticos nada fazem para disciplinar seu meio, passa a não apenas aceitar, mas exigir, que outros tomem providências, mesmo que essas providências se dêem ao arrepio da lei e do respeito aos direitos de cidadania. Num cenário de impunidade e ausência de instrumentos de resguardo do respeito à coisa pública, linchamentos (ainda que não propriamente físicos, mas morais) começam a se mostrar atraentes para muitos.
Um exemplo deste tipo de linchamento é o uso que boa parte da imprensa vem fazendo da expressão "lista suja" ou "ficha suja" para se referir àqueles que constam das relações divulgadas por órgãos como a AMB e a Transparência Brasil. Ora, como os ali relacionados respondem a processos que ainda não transitaram em julgado, permanecem - até sentença em contrário - apenas como "supostos culpados", ou "suspeitos". O problema é que a pecha da "ficha suja" pode provocar danos irreparáveis a muitos que ainda têm o direito de defender-se e provar sua inocência. Portanto, embora a divulgação de informações sobre a situação judicial dos candidatos seja algo desejável numa democracia (quanto mais transparência melhor), é preciso ter cautela na qualificação que se dá a essas pessoas. Falar em "ficha suja" é, certamente, impróprio.
Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP. A titular da coluna, às quartas-feiras, Rosângela Bittar, está em férias
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