Quem mandou os militares de volta para a caserna foi o voto popular nas eleições de 1974, 1978, 1982 e 1986, além da campanha das Diretas Já
Correio Braziliense e Estado de Minas
“A verdade é filha do poder. Nós, militares, nunca fomos intrusos na história.” A frase, do ex-ministro do Exército Leonidas Pires Gonçalves, aos 94 anos, em entrevista à Folha de S. Paulo, merece profunda reflexão. Fiador da transição à democracia — tanto da eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, como da posse do ex-presidente José Sarney —, o general liderou a retirada em ordem dos militares do poder e sua volta aos quartéis, onde permanecem, conforme determina a Constituição de 1988. Houve um grande acordo entre os militares e os políticos para que a democratização do país se desse sem mais derramamento de sangue.
Uma parte da esquerda participou da negociação, que resultou na Lei da Anistia e na derrota do ex-governador paulista Paulo Maluf no colégio eleitoral, mas um setor mais radical da oposição, encabeçado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nunca aceitou o pacto, assim como os militares da chamada linha-dura. Hoje, por ironia, a presidente Dilma Rousseff é uma ex-militante da luta armada. A sociedade promove um ajuste de contas político e moral contra os militares torturadores e assassinos. Quer passar a limpo os porões do regime militar. A velha guarda militar reage, pois se considera salvadora da pátria, hipoteticamente ameaçada pelo comunismo durante o governo deposto de João Goulart.
O positivismo
Exatamente porque nunca foram intrusos na história — pelo contrário, durante o império, o Exército é que garantiu a integridade territorial do país –, os militares foram protagonistas de todas as rupturas institucionais e tentativas de golpe de Estado ocorridas no Brasil. Influenciados pelo positivismo de Auguste Comte (1798-1857), destronaram dom Pedro II, em 1889, e proclamaram a república. Os políticos abolicionistas e republicanos foram meros coadjuvantes; o povo assistiu bestializado à queda da monarquia constitucional. O positivismo fez escola também entre os políticos gaúchos, a partir de Júlio de Castilhos, e influenciou fortemente a esquerda, sobretudo depois que uma ala do movimento tenentista, liderada pelo capitão Luiz Carlos Prestes, assumiu o comando do Partido Comunista.
A Revolução de 1930, que levou Getúlio ao poder e liquidou a República Velha; a Intentona de 1935, em que os comunistas tentaram tomar o poder; e o golpe do Estado Novo, em 1937, no qual Getúlio tentou implantar um regime fascista, foram momentos importantes da nossa história nos quais o povo novamente ficou à margem. A destituição de Getúlio, em 1945, quando houve a democratização; a posse de Juscelino Kubitschek, em 1956; a crise da renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, em 1962, foram momentos em que houve intensa agitação militar.
Tão forte é a presença do positivismo na política brasileira que sua fórmula está perpetuada na nossa bandeira: ordem e progresso. “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”, ou seja, cada coisa em seu devido lugar para a perfeita orientação ética da vida social. Durante o regime militar, o lema ganhou uma interpretação específica: desenvolvimento e segurança, que se traduziu em projetos faraônicos, como a Transamazônica, a violenta repressão à oposição, com torturas e assassinatos.
A guerra fria
O peso atribuído à Guerra Fria na deflagração do golpe de 1964 é exagerado e legitima o radicalismo de direita e de esquerda que ocorreu à época. “O Castelo Branco era um patriota. Deu o golpe na nossa frente”, disse-me, certa vez, o então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Salomão Malina. Herói da tomada de Montese, na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, Malina fazia parte do grupo de ex-militares que comandava o antigo Partidão, ao lado de Prestes, Giodondo Dias, Dinarco Reis e outros ex-oficiais e ex-soldados. No livro A ditadura envergonhada, Elio Gaspari narra um encontro de Prestes com o líder soviético Nikita Kruschev, em Moscou, no qual defendeu a reeleição de Jango e afirmou que o “dispositivo militar” do general Argemiro Assis Brasil, ministro da Guerra de João Goulart, seria capaz de “cortar a cabeça” da reação.
A ideia de que o embate entre João Goulart e os governadores da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, seria decidida por tal dispositivo militar era um equívoco. Não levou em conta que a agitação e a quebra de hierarquia nas Forças Armadas acabaria facilitando a vida de velhos conspiradores das casernas, como os generais Costa e Silva, Ernesto e Orlando Geisel, Golbery do Couto e Silva e Mourão Filho, Costa e Silva, esses, sim, eméritos golpistas. Os generais Humberto Castelo Branco, chefe do estado-maior, e Amauri Kruel, comandante de São Paulo, aderiram ao golpe por causa disso, bem como políticos liberais, como Juscelino, que era o candidato favorito às eleições de 1965, com 37% nas pesquisas.
Não é exagero afirmar que houve um brutal erro de avaliação da correlação de forças e de condução política por parte de João Goulart, Leonel Brizola e Prestes, embora nada justifique o que houve depois disso: a ditadura fascista. A tese de que o golpe militar poderia ser derrotado pelas armas justificou outro equívoco: o voluntarismo foguista de Carlos Marighela e outros líderes, que optaram pela luta armada contra o regime e foram dizimados. Não tinha a menor chance de dar certo. Quem mandou os militares de volta para a caserna foi o voto popular nas eleições de 1974, 1978, 1982 e 1986, além da campanha das Diretas Já, liderada por Ulyssses Guimarães, e a eleição de Tancredo Neves para a Presidência no colégio eleitoral, em 1985.
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