- O Estado de S. Paulo
Que uma pessoa de origem pobre tenha alcançado o cargo de vice-presidente da Câmara deveria ser um sinal de vitalidade da democracia brasileira. Que o tenha feito cometendo crimes contra a administração pública e o sistema financeiro é sinal de alerta. André Vargas não é um caso isolado.
O uso da política para enriquecer e acumular ainda mais poder político não é prática nova no Brasil. Para não recuar demasiado no tempo, basta lembrar a emergência de novos grupos oligárquicos a partir dos anos 50, que desbancaram as velhas oligarquias rurais e alçaram voo nas asas do Estado desenvolvimentista, intermediando verbas federais e grandes contratos entre empresas estatais e empresas privadas, em seus Estados de origem. Decolaram ainda no regime democrático de 1945-1964, ganharam altura durante a ditadura militar e mantiveram-se em velocidade de cruzeiro no retorno à democracia. Algumas dessas oligarquias estaduais estão aí até hoje.
Com características distintas, a associação entre projeção política e ascensão social se deu também em Estados mais desenvolvidos da Federação. São Paulo, não faz tempo, teve um governador que saiu da classe média do interior para acumular fortuna e poder ao longo de sua carreira política. E outro que, mesmo nascido em berço de ouro, seguiu semelhante trajetória de desvio de recursos públicos para os próprios bolsos.
Aparentemente, pois, não há nada de novo em cena. Mas não é bem assim. A primeira novidade é que parte das forças que se empenharam pela real democratização social e política do País passou a reproduzir velhas práticas. Sob esse aspecto, há muito em comum entre André Vargas e o ex-deputado José Janene, ambos do Norte do Paraná, embora o primeiro venha de uma família pobre, tenha rezado, por breve período, a cartilha da Teologia da Libertação e pertença ao PT, enquanto Janene, falecido depois de ser indiciado no processo do mensalão, fosse rico fazendeiro e deputado do PP.
Ainda mais importante é o fato novo de que, com o PT no poder federal, práticas de corrupção antes descentralizadas tornaram-se mais sistemáticas e orgânicas. Não desapareceram os esquemas localizados, mas a eles se acrescentou, não raro subordinando-os, uma organização político-partidária nacional e mais bem estruturada. Note-se, para ficar no exemplo em questão, que Vargas abastecia o caixa de vários partidos da base aliada, mas era ele, por ter melhor acesso ao poder federal, quem dava as cartas do jogo. Vargas discrepa do padrão do seu partido por ter misturado financiamento político com enriquecimento pessoal.
A nova cena se completa quando consideramos que, ao mesmo tempo, a disponibilidade de recursos públicos e privados aumentou, entre 2003 e 2010, com a aceleração do crescimento, e a nova expansão da presença do Estado no domínio econômico criou novas oportunidades de negócios aqui e em países "amigos" não democráticos. Simultaneamente, romperam-se as barreiras à ocupação política de empresas, órgãos e agências estatais, para acomodar a nova elite no poder e seus aliados.
A presidente Dilma não é protagonista da cena que se está revelando a cada dia um pouco mais. Recebeu o cenário pronto das mãos do seu antecessor. E não tem nem força política para alterá-lo nem talento político para seguir o script, agora que os atores batem cabeça em cena aberta e a plateia já não está mais inebriada pelo "espetáculo do crescimento".
O desafio é reescrever o enredo que vem desmoralizando a política, os partidos e o Congresso no Brasil. Não há risco iminente à democracia. Mas não há regime democrático que possa conviver indefinidamente com a desmoralização cada vez maior de suas principais instituições.
O primeiro passo é mudar os protagonistas. A alternância no poder é saudável, sobretudo depois de três mandatos consecutivos. Isso, porém, está longe de ser suficiente. É preciso limitar as áreas do Estado submetidas à lógica da barganha política, saneando as empresas estatais, as agências regulatórias, eliminando ministérios e reduzindo cargos em comissão. É urgente que a maior capacidade investigativa da Polícia Federal e do Ministério Público se traduza, no Judiciário, em punição efetiva de corrompidos e corruptores. Para tanto, deve-se recolocar em pauta a chamada Emenda Peluso, que permite a aplicação da pena a partir da segunda instância, sem prejuízo do direito do réu a recorrer ao STJ ou ao STF, e rever a lei de execuções penais, que prevê progressão de regime depois de cumprido apenas um sexto da pena.
Com a decisão do STF de proibir as doações eleitorais de empresas privadas, hoje as atenções se voltam quase exclusivamente para o financiamento das campanhas. Não haverá solução satisfatória para essa questão sem redução dos custos crescentes das campanhas eleitorais, a principal origem da corrupção envolvendo dinheiro público. O atual sistema proporcional com lista aberta nas eleições para o Legislativo encarece as campanhas e dificulta o controle do eleitor sobre o representante. Chegou a hora de um acordo em torno do sistema distrital misto, cuja introdução não requer emenda à Constituição.
A proeminência do marketing político, com custos não raro propositalmente superfaturados para atender a conveniências políticas, alavanca ainda mais os gastos das campanhas políticas. Nas eleições presidenciais de 2010 eles somaram aproximadamente R$ 600 milhões! Não haverá dano ao direito à informação do eleitor se medidas legais forcem a simplificação dos programas eleitorais na TV.
As questões aqui mencionadas - nenhuma isenta de controvérsia - precisam ser enfrentadas se quisermos restabelecer a credibilidade de instituições essenciais ao bom funcionamento da democracia. Formam uma pauta que exigirá liderança do próximo governo e pressão da sociedade para que se produzam avanços concretos.
* Superintendente executivo do IFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of public policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
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