• Bolsonaro constrói o seu estelionato eleitoral – Editorial | O Globo
A distribuição de cargos e orçamentos ao centrão começa a definir o destino deste governo
Para quem se elegeu com um discurso visceral contrário à “velha política”, a perspectiva para Jair Bolsonaro é se constituir num estrondoso estelionato eleitoral. O presidente construiu uma imagem muito diferente do que ele é de fato, e isso cobra um preço. As primeiras faturas enviadas a Bolsonaro se devem à queda do disfarce de liberal, deixando aparecer as feições ideológicas de um defensor de corporações, e contrário, portanto, a mudanças incluídas na reforma da Previdência para reduzir a injusta distância entre segmentos privilegiados do funcionalismo público e a grande maioria de assalariados do setor privado. Esta distância entre o verdadeiro capitão e o candidato deve ter sido percebida por uma minoria dos recém-convertidos bolonaristas, preocupados com nuances ideológicas em torno do liberalismo. Se desembarcaram do projeto do novo presidente, devem ter sido compensados com sobras pela adesão de corporações do funcionalismo.
Mas agora, ao confiar o respaldo parlamentar do seu governo ao centrão e a políticos em geral especializados em vender apoio em troca de cargos e orçamentos, Bolsonaro radicaliza o seu processo de metamorfose para mostrar quem verdadeiramente é.
As sérias avarias sofridas pelo aumento da toxidade do caso do desvio de salários de assessores de gabinetes da Assembleia do Rio (Alerj) — a “rachadinha”, em que está implicado o filho senador Flávio —, acrescidas dos riscos que corre com os inquéritos que tramitam no Supremo para investigar usinas de fake news e subterrâneos das manifestações antidemocráticas, e isso tudo amplificado pelas denúncias do ex-ministro Sergio Moro, levam Bolsonaro a se preparar para a luta pela sobrevivência. Quer dizer, tentar reunir na Câmara no mínimo 171 votos para impedir que se aprove contra ele um processo de impeachment ou permissão para que seja processado no STF.
Bolsonaro começa a ficar parecido com Michel Temer (2016-18) e Collor (1990-1992), dois presidentes que se recolheram para montar barricadas de defesa em meio a um intenso toma lá dá cá, como o que o governo começa a praticar com o centrão e aparentados. O Temer reformista soube escolher boa equipe econômica, mas foi demolido na conversa indevida com o empresário Joesley Batista nos porões do Palácio Jaburu. Porém, manteve o mandato. Collor terminou abatido pelas revelações do irmão Pedro dos seus negócios com PC Farias.
Bolsonaro, ao seu modo, vai repetindo a história: acaba de entregar o orçamento de R$ 50 bilhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do MEC, ao PL de Valdemar Costa Neto, mensaleiro, ex-presidiário, sem mandato, mas muito ativo.
Há pouco o presidente recolocou no conselho de Itaipu, uma sinecura binacional, o ex-deputado federal e ex-ministro de Temer Carlos Marun, do MDB, combatente da tropa de choque do ex-presidente. Na mesma leva, foi outro ex-deputado, José Carlos Aleluia, do DEM do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. A ver qual dos finais possíveis terá este roteiro.
• Lobby de servidores, com apoio do governo, aumenta as desigualdades – Editorial | O Globo
Em meio à pandemia, criou-se mais um privilégio ao funcionalismo, cujas remunerações já estavam acima dos padrões
Em plena pandemia, corporações da elite do funcionalismo público estão conseguindo aumentar as vantagens que os servidores civis e militares já possuíam em relação aos trabalhadores do setor privado.
O Estado brasileiro já pagava aos funcionários federais e estaduais salários cerca de 20% superiores à média do setor privado — em algumas carreiras a diferença superava 36%, segundo o Banco Mundial. A desigualdade tende a aumentar com a devastação da economia privada.
Houve redução salarial significativa (de 25% a 70%) para mais de sete milhões de empregados na indústria e em serviços, sobretudo comércio. Trabalhadores informais amargam perda total de renda. E o contingente de desempregados, que já superava 11 milhões, segue crescente.
Antes da pandemia, mais de 50% dos trabalhadores formais do setor privado ganhavam menos do que R$ 2.300. Já no setor público essa proporção era inferior a 25%, e com estabilidade no emprego.
O Estado induz a concentração da renda em benefício do funcionalismo, cujas carreiras têm remuneração inicial acima de R$ 10 mil mensais, mais de nove salários mínimos.
Integrantes da alta burocracia, juízes contestaram a eventual redução dos salários. Oficiais militares e policiais, recém-beneficiados com aumentos na aposentadoria, pressionaram contra a proposta encampada pelo Ministério da Economia para corte salarial temporário de 25% — mínimo aplicado no setor privado.
O lobby dos burocratas funcionou. O Congresso limitou-se a aprovar um “congelamento” dos aumentos aos servidores até 31 de dezembro de 2021. No dia seguinte começa o ano eleitoral. Mas o presidente Jair Bolsonaro resolveu protelar a sanção do projeto aprovado, abrindo espaço para que a Polícia Militar pressione governadores e assegure reajustes antes do “congelamento”. Aos policiais somaram-se outras categorias de servidores.
Assim, em meio a uma pandemia que já matou 17.971 pessoas, e destruiu salários e empregos em milhões de pequenas e médias empresas, criou-se mais uma situação de privilégio ao funcionalismo, cujas remunerações já estavam bem acima dos padrões, inflacionadas por 405 tipos de gratificações, incluindo as de “desempenho” (167).
A discrepância com o setor privado já deixa 60% dos servidores federais e estaduais em destaque no estrato dos 20% mais ricos do país.
Não há equidade de sacrifícios na crise. Transferiu-se ao setor privado, trabalhadores e empresas, o custo integral do desastre econômico provocado pela pandemia.
• A cloroquina e o crime de responsabilidade – Editorial | O Estado de S. Paulo
À plena luz do dia, Jair Bolsonaro utiliza-se do cargo para causar dano à saúde da população, em escancarado exercício abusivo do poder.
A pressão do presidente Jair Bolsonaro para que o Ministério da Saúde altere, contra as evidências e estudos médicos, o uso da cloroquina em pacientes com covid-19 é uma patente violação do direito à saúde, tal como previsto na Constituição de 1988. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, estabelece o art. 196 da Carta Magna.
A manobra do presidente é manifestamente perversa, por insistir numa medida com graves riscos para a saúde da população. Nada mais nada menos, Jair Bolsonaro quer que o Ministério da Saúde atue em sentido contrário ao que preconiza a medicina. Até Nelson Teich, que assumiu a pasta da Saúde assegurando “alinhamento completo” com o presidente, se recusou a assinar o novo protocolo.
Mas isso não é obstáculo para Jair Bolsonaro. Se médicos não podem assinar a mudança de orientação no uso da cloroquina, por ferir a ética profissional, o presidente da República quer valer-se do interino, Eduardo Pazuello, que não é médico – e sim um general de brigada intendente –, para obter a desejada aquiescência a seus arbítrios. À plena luz do dia, Jair Bolsonaro utiliza-se do cargo para causar dano à saúde da população, em escancarado exercício abusivo do poder.
Vale notar que a insistência de Jair Bolsonaro no uso da cloroquina não causa danos apenas à saúde da população. Ela coloca em risco a própria permanência de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, uma vez que a insistência em agredir a saúde da população, prescrevendo algo que afronta as evidências médicas, se encaixa inequivocamente em uma das descrições dos crimes de responsabilidade previstos na Lei 1.079, de 1950.
Assim estabelece o seu art. 7.º: “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (9) violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição”. Editada em 1950, a lei refere-se aqui a dois artigos da Constituição de 1946. O primeiro protege os direitos fundamentais – direito à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade – e o outro, os direitos sociais, incluindo a saúde. A Constituição de 1988 ampliou e tornou ainda mais explícito esse direito.
No caso, a conduta do presidente da República não viola o direito à saúde por uma limitação de recursos financeiros, falta de infraestrutura, ausência de mão de obra qualificada ou alguma circunstância condicionante da atuação do poder público. Não é que o Estado, em razão de alguma limitação, se mostre incapaz de prover atendimento médico adequado à população. O empenho de Jair Bolsonaro para ampliar o uso da cloroquina em pacientes com covid-19 é de outra ordem e, portanto, de outra gravidade. O que se vê é o uso insistente e arbitrário do poder presidencial para pôr em risco a saúde da população.
É de tal forma desastrosa, do ponto de vista médico, a ampliação do uso da cloroquina que governadores ouvidos pelo Estadão disseram que ignorarão o novo protocolo, se houver. Além dos graves efeitos colaterais da cloroquina e da ausência de comprovação de sua eficácia no tratamento da covid-19, o novo protocolo não contribuiria para solucionar os problemas principais das atuais circunstâncias, por exemplo, a falta de respiradores, leitos e testes.
Os fatos são contundentes: o governo de Jair Bolsonaro é completamente disfuncional. E de pouco adianta a presença de pessoas oriundas das Forças Armadas, seja com experiência em coordenação, logística ou enfrentamento de crise, se a orientação que prevalece no Executivo federal são os delírios de Jair Bolsonaro. Não se pode tapar o sol com peneira. Não há racionalidade e tampouco moderação em um governo no qual o presidente da República tenta obrigar o Ministério da Saúde a emitir uma orientação que inequivocamente coloca em risco a saúde da população. É o poder direcionado a causar dano, e isso é crime.
• O verdadeiro Bolsonaro – Editorial | O Estado de S. Paulo
Cresce a mobilização da sociedade civil para enfrentar a vocação autoritária do governo
O presidente Jair Bolsonaro tem atraído cada vez menos simpatizantes para as manifestações antidemocráticas organizadas pelos camisas pardas do bolsonarismo. No domingo passado, diante do Palácio do Planalto, havia só um punhado de devotos, a quem o presidente qualificou de “povo”. Está cada vez mais claro que seu suporte real, hoje, depende fundamentalmente dos partidos fisiológicos que o bolsonarismo jurou varrer. Para estes, só existe crise quando o cheque que lhes compra o voto – isto é, a promessa de cargos na administração federal – não tem fundos.
Esse evidente isolamento de Bolsonaro cresce na mesma proporção em que sua incapacidade de governar se torna evidente sempre que o presidente toma uma decisão – qualquer uma. Está cada vez mais difícil encontrar quem aponte, sem corar, alguma qualidade nas deliberações de Bolsonaro, em especial nas que dizem respeito à pandemia de covid-19. Ao contrário: as decisões de Bolsonaro tendem a ser simplesmente ignoradas, como acontecerá com seu decreto que incluiu salões de beleza e academias entre as “atividades essenciais”, rejeitado por vários governadores.
Mas não é apenas seu governo destrambelhado que explica o crescente descrédito. Avolumam-se denúncias contra o presidente, sua família e seus apaniguados. A mais recente partiu do empresário Paulo Marinho, um dos tantos bolsonaristas de primeira hora que romperam com o presidente.
Marinho disse ao jornal Folha de S.Paulo que em 2018 o hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente e na época deputado estadual no Rio de Janeiro, lhe contou que obteve de um delegado da Polícia Federal (PF) informações acerca de investigações sobre corrupção na Assembleia fluminense que poderiam atingir um de seus assessores, o hoje notório Fabrício Queiroz. E mais: que o delegado informou que uma operação da PF sobre o caso, prevista para ocorrer na véspera do segundo turno da eleição presidencial, seria adiada para não interferir na disputa – ou seja, prejudicar Bolsonaro. O tal delegado, então, orientou Flávio a exonerar Fabrício Queiroz e a filha deste, Nathalia Queiroz, que estava lotada no gabinete de Jair Bolsonaro, na época deputado federal. Foi o que aconteceu.
O caso Queiroz afinal veio à tona em 6 de dezembro, quando o [BOLD]Estado[/BOLD] revelou que a investigação na Assembleia havia descoberto que o ex-assessor de Flávio Bolsonaro – e muito próximo do presidente eleito – fez movimentações bancárias atípicas, indicando suposto esquema de “rachadinha”. Desde então, o caso assombra o clã presidencial.
A Procuradoria-Geral da República informou que vai analisar a denúncia de Paulo Marinho, adicionando tensão a um governo que flerta dia e noite com o caos e com a ruptura. Além das ossadas insepultas dos tempos em que os Bolsonaros, protegidos pela mediocridade do baixo clero, podiam pintar e bordar sem chamar a atenção, ameaça o governo a crescente mobilização da sociedade civil para enfrentar sua evidente vocação autoritária. “É hora de dar um basta ao desgoverno”, conclamou um manifesto da Comissão Arns, de defesa dos direitos humanos. “Qualquer apelo e estímulo às instituições armadas para a quebra da legalidade democrática (...) merecem a mais veemente condenação”, declararam seis ex-ministros da Defesa em nota para reagir à tentativa de Bolsonaro de envolver as Forças Armadas em seus devaneios cesaristas.
Bolsonaro reage a tudo isso da maneira habitual: insultando a inteligência alheia. Durante a minguada manifestação de seus sabujos no Palácio do Planalto, o presidente obrigou 11 de seus ministros a participarem daquele ato constrangedor, para dar ares de grande evento. Além disso, mandou que os líderes do ato retirassem as faixas de caráter golpista – e então declarou que a tal manifestação, em que uma jornalista foi agredida, estava “de parabéns” por não trazer “nenhuma faixa, nenhuma bandeira que atente contra a nossa Constituição e contra o Estado Democrático de Direito”.
Um desinformado concluiria que ali estava um democrata confraternizando com sinceros apoiadores. O problema, para o presidente, é que os desinformados são cada vez menos numerosos – a grande maioria já sabe muito bem quem Bolsonaro é.
• Um TRF desnecessário e inoportuno – Editorial | O Estado de S. Paulo
Em meio à pandemia, políticos e magistrados querem criar uma corte cara e desnecessária
Apesar da escassez generalizada de recursos públicos que já dura alguns anos e foi agravada pela eclosão da pandemia de covid-19, o Poder Judiciário continua desconectado da realidade social e fiscal, imaginando que o caixa do Tesouro Nacional é infinito. Prova disso é a insistência do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio Noronha, em obter do Congresso aprovação para o projeto de lei que autoriza a criação de mais um Tribunal Regional Federal (TRF).
Pelo projeto, a Corte terá jurisdição no Estado de Minas Gerais e, se sua criação for aprovada, abrirá um precedente para pressão de outros Estados. O coordenador da bancada baiana na Câmara dos Deputados, deputado Marcelo Nilo (PSB), por exemplo, já afirmou que, “se sair o TRF de Minas, o da Bahia será o próximo da lista”.
Em 2013, vários setores do Judiciário se mobilizaram para defender a instalação de quatro TRFs nos Estados do Paraná, Bahia, Amazonas e Minas Gerais, e só não obtiveram êxito por causa da resistência do então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa. Segundo ele, a expansão da segunda instância da Justiça Federal não fazia sentido, do ponto de vista funcional, e obrigaria a União a fazer vultosos gastos desnecessários. O caso havia sido levado ao STF por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Associação Nacional dos Procuradores Federais.
A nova ofensiva partiu de Noronha, que é mineiro e conta com o apoio do Centrão – o grupo de partidos que, em troca de cargos, está pronto a deter no Congresso qualquer processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Apesar do apoio do Centrão, o pleito de Noronha sofre forte oposição da equipe econômica do governo. Ela alega que o dinheiro a ser gasto com a criação de um novo TRF levaria o Judiciário a desrespeitar o teto de gastos fixado pela Constituição e que a Justiça Federal não tem como cortar despesas para compensar esse investimento. Também alega que, em 2019, os diferentes braços especializados do Judiciário só cumpriram o limite constitucional de gastos graças a uma negociação com o Executivo. Na época, ficou decidido que isso não aconteceria mais a partir de 2020.
A proposta do presidente do STJ é a mesma que foi contida há sete anos pelo ministro Joaquim Barbosa. Apesar da liminar que concedeu, o projeto continuou tramitando no Legislativo e seus defensores pediram urgência na votação. Ele prevê a criação de 18 cargos de desembargadores, com vencimentos de R$ 35 mil brutos, além dos penduricalhos, que não são levados em conta para cálculo do teto salarial do funcionalismo. Prevê, também, a contratação de pessoal de apoio, entre analistas judiciais, secretárias e contínuos, e infraestrutura física – ou seja, a construção de mais um “Palácio da Justiça”. Exigirá, ainda, aquisição de veículos oficiais para os novos magistrados. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que a criação de novos TRFs, além de não aumentar a produtividade da Justiça Federal, acarretaria gastos adicionais de R$ 922 milhões, num momento em que a União está pressionada por um déficit público crescente, em função do combate à pandemia de covid-19, da queda da arrecadação e do desemprego.
Além da resistência da equipe econômica, o projeto de criação de um TRF em Minas sofre oposição do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que, agindo com sensatez, se recusa a colocá-lo em votação. Contudo, ele já foi vencido no acordo para que o projeto fosse considerado prioritário e agora vem sendo fortemente pressionado pelo atual vice-presidente da Câmara, deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), um dos líderes do Centrão.
Infelizmente, ao não medir esforços para tentar criar mais uma corte, setores do Poder Judiciário revelam que, em matéria de finanças públicas, vivem num planeta onde não há sensatez, prudência e responsabilidade.
• Vício petista – Editorial | Folha de S. Paulo
Em SP, Tatto faz promessa irrealista; sigla se arrisca a falar só a convertidos
Se houver novidade na eleição para a prefeitura paulistana, não virá do PT. O candidato recém-definido pelo partido, Jilmar Tatto, é um velho conhecido do eleitorado local, em particular o da região da Capela do Socorro, na zona sul, apelidada de Tattolândia devido à influência de sua família.
Ele e quatro irmãos já conquistaram cargos legislativos com os votos do reduto, onde o poder do clã remonta aos anos 1980. O prefeitável petista conhece como poucos a máquina municipal, tendo ocupado cargos importantes nas gestões de Marta Suplicy (2001-2004) e Fernando Haddad (2013-2016).
Tampouco se pode chamar de inovadora a proposta mais vistosa apresentada por Tatto em entrevista à Folha —a gratuidade do transporte de ônibus na cidade.
Essa era, afinal, a bandeira dos movimentos que protestaram contra os reajustes de tarifas promovidos pelos governos paulista e paulistano em 2013, quando o hoje candidato ocupava justamente a pasta municipal de Transportes. A negativa da época contribuiu para desencadear uma onda nacional de manifestações, não raro violentas.
“Eu sei onde buscar os recursos”, diz Tatto, acerca dos exorbitantes subsídios necessários para custear a promessa. É curioso que não soubesse sete anos atrás, quando seu partido estava instalado no poder federal e as condições orçamentárias se mostravam muito menos dramáticas que as atuais.
Em valores de então, calculava-se que a benesse obrigaria a prefeitura a elevar de R$ 1 bilhão para R$ 5,6 bilhões o gasto anual com o transporte coletivo. Note-se que Tatto, hoje, ainda pretende implantar um programa de renda básica.
O PT vai persistindo na prática de abandonar, na oposição, o realismo político e financeiro que conseguiu respeitar em boa parte de suas administrações —e o estelionato reeleitoral de Dilma Rousseff é o contraexemplo mais doloroso para a legenda e o país.
Com tal estratégia desgastada, arrisca-se a pregar apenas para militantes e convertidos, se não for essa a intenção. Não parece ser diferente com o recém-anunciado “Plano Lula para o Brasil”, um pretenso programa de reconstrução econômica do país que por ora só tem de concreto a reverência ao cacique.
Divulgou-se depois que o próprio Lula estaria decidido a retirar seu nome da empreitada, de modo a facilitar a adesão de outras forças. Soa tão farsesco quanto a intenção, manifestada no segundo turno da disputa presidencial, de reunir uma frente política ampla em apoio a Fernando Haddad —aliás, o coordenador do novo plano.
• O caso da Suécia – Editorial | Folha de S. Paulo
Defender estratégia do país escandinavo no Brasil desconsidera quadro diverso
No debate sobre a estratégias contra a pandemia de coronavírus, o exemplo sueco tem sido esgrimido como argumento de diversos pontos de vista, do técnico ao ético e do epidemiológico ao ideológico. Até o presidente Jair Bolsonaro agarrou-se a ele.
No mais das vezes, reduz-se a situação no país escandinavo a uma caricatura. Bolsonaro quis destacá-lo como paradigma da inutilidade do isolamento social, numa comparação destrambelhada entre Argentina, que critica, Brasil, que sabota, e Suécia, que admira.
O presidente, mais uma vez, deu prova de despreparo. Na conta por milhão de habitantes que sugeriu, os vizinhos se saem melhor (178 casos/milhão) que os brasileiros (1.140), e os suecos ficam em último lugar (2.937), até o fim de semana.
Tais cifras indicam que os suecos erram ao não adotar medidas draconianas como as de outras nações europeias? É cedo para dizer. A depender da duração da pandemia e do tempo para aprovar-se uma vacina eficiente, aceitar mortalidade mais elevada de partida pode ou não se revelar uma política adequada ¬—é uma aposta.
Aposta fundada em lógica e princípios, a bem dizer, não em crenças irracionais como a viabilidade de uma retomada geral de atividades ou os efeitos da cloroquina.
Equivoca-se quem propagandeia que não houve política de distanciamento social na Suécia: museus, estádios, universidades e colégios fecharam, proibiram-se visitas a casas de repouso e reuniões de mais de 50 pessoas.
Sim, o comércio permaneceu aberto, mas com regras contra a aproximação entre clientes. E o país europeu tem metade dos habitantes da Grande São Paulo, baixa densidade demográfica, população de alto nível de escolaridade e sistema de saúde eficiente, que passou longe do colapso mesmo com a maior proporção de casos.
Brandir esse caso como exemplo a ser seguido no Brasil soa como chiste macabro. Aqui nem sequer há informações confiáveis sobre quantidade de infecções e óbitos por Covid-19 para nortear qualquer política de distanciamento, menos ou mais rigorosa.
Na penumbra das evidências parcas e da desrazão rampante, tateamos entre tentativas e erros. Basta ver as idas e vindas em São Paulo quanto à mobilidade dos cidadãos, que não se consegue reduzir.
Certo é que não existe política única para garantir isolamento social na medida certa. Países, regiões e cidades enfrentam momentos diferenciados na marcha da epidemia, com recursos sanitários e condições sociais díspares.
• Mudanças no poder global colocam em xeque a OMC – Editorial | Valor Econômico
Não há mais um polo dominante na arena comercial e política
A saída antecipada de Roberto Azevêdo do comando da Organização Mundial do Comércio é simbólica de uma mudança de fase no jogo econômico e político do comércio mundial. A pandemia acelerou as tendências anti-globalização, que já haviam sido potencializadas pela ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos e de outros populistas em vários países. O protecionismo em alta é o antípoda do espírito radicalmente negociador de seu diretor-geral e da OMC, que vive grave crise.
A tensão entre a expansão da globalização, sustentada pelas instituições multilaterais, e a perda de parte da soberania dos Estados nacionais é antiga, mas subiu ao palco principal a partir da crise de 2008. Ela já existia sob outra forma, como revelou o fracasso da Rodada Doha da OMC, após mais de uma década de negociações. A aliança que procurava moldar novas regras era diferente: China, Índia e Brasil, potências então ascendentes, tentaram limitar velhos privilégios da Europa e Estados Unidos. Nessa contenda, o protecionismo foi uma arma usada pelos países emergentes, enquanto que a defesa do livre comércio manteve-se como estandarte padrão dos países ricos. Agora, a lógica mudou.
A China é a segunda maior potência econômica e adotou o discurso da globalização, após tornar-se o parque fabril do mundo. A Europa perdeu-se em meio a crise econômicas e ameaças de estilhaçamento do maior bloco econômico do mundo. Os EUA, que criaram as instituições multilaterais e davam as cartas no comércio global, perderam a hegemonia e estão seriamente ameaçados de perder a liderança tecnológica. Entrou em cena Donald Trump e seu “A América em primeiro lugar”.
Pequim está longe de respeitar as regras do livre mercado e da democracia, mas ao ser aceita na OMC e ganhar poder econômico e político global, usa o multilateralismo como uma bandeira que lhe é conveniente. Sob Barack Obama, os EUA traçaram uma estratégia dentro das regras do jogo para conter o expansionismo chinês, ao desenhar a Parceria TransPacífico, o maior acordo comercial com uma dúzia de nações, para deter as rédeas da política comercial na região que mais cresce no mundo, e impedir que Pequim ditasse as regras.
Trump mudou tudo. Ele está destruindo os organismos multilaterais, e a OMC é um dos alvos. Há consenso entre os republicanos de que a OMC legisla contra os interesses americanos e extrapola suas funções, uma crítica enviesada que conta com a simpatia de muitos democratas. Os EUA, sem alarde, impediram o tribunal da OMC, único com poder de decisão efetiva sobre disputas comerciais globais, de operar. Recusaram-se a indicar juízes e hoje a corte de apelação está paralisada.
A resposta à pandemia desorganizou as cadeias de produção e tende, no atual contexto, a redesenhá-las, com algum retorno da produção de itens estratégicos, como os ligados ao setor de saúde, para as indústrias domésticas. Esta reestruturação não necessariamente leva ao protecionismo, que é mais uma reação política que com vistas a obter supostas vantagens comerciais.
Com fins eleitorais, Trump voltou a atacar a China, principalmente no decisivo front tecnológico, buscando impedir que a Huawei, à frente na disputa pelo 5G, obtenha semicondutores americanos. Agora, os EUA ameaçam retaliar fornecedores externos da Huawei que usem equipamentos americanos e vendam ao gigante chinês. A China também já deu vários passos para restringir grandes empresas de TI dos EUA de prosperarem no mercado doméstico.
Nessa guerra pela corrida tecnológica, os EUA jogam com a lei do mais forte e vão exigir “lealdade” e alinhamento para continuarem a manter relações com seus parceiros mais frágeis. O jogo diplomático chinês usa a sedução da neutralidade na disputa, amparada por investimentos diretos e acesso a seu gigantesco mercado.
A Europa é aliada e rival dos EUA. Trump não aceita restrições à expansão das gigantes de TI de seu país no mercado europeu e os europeus não aceitam as jogadas monopolistas delas. Essa é uma fonte de atritos, mas há alianças possíveis. Uma delas é a reforma da OMC, que pode ser mutuamente proveitosa. A UE já cobiça a vaga de Azevêdo e antes de sua saída articulava mudanças para restringir as vantagens indevidas da China. Os passos isolados, ou em conjunto, ilustram que não há mais um polo dominante na arena comercial e política. A tendência ao protecionismo pode mudar, porém, se Trump perder as eleições.
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