quarta-feira, 1 de julho de 2020

Martin Wolf - A grande interrupção continua

- Valor Econômico

Pode ser que esta catástrofe traga uma vantagem: descobrir não apenas que o governo voltou, mas que a exigência de um governo sensato tocado por pessoas competentes voltou. Não se deve desperdiçar o valor de uma crise

A atualização do Panorama Econômico Mundial do Fundo Monetário Internacional (FMI) para junho não é um documento animador. Mas contém, indubitavelmente, um argumento animador: o segundo trimestre de 2020 deverá representar o ponto mais baixo da crise econômica decorrente da covid-19. Se é assim, o desafio é produzir a recuperação o melhor possível.

O rebaixamento das previsões do FMI desde abril é grande, com o crescimento mundial previsto em -4,9% neste ano, inferior aos -3% de abril. O crescimento do ano que vem deverá ser de 5,4%, segundo o prognóstico. Prevê-se que a produção mundial, em decorrência disso, ultrapassará ligeiramente em 2021 os níveis de 2019. Mas, no quarto trimestre de 2021, o Produto Interno Bruto (PIB) de países de alta renda ainda será menor que os níveis registrados no primeiro trimestre de 2019. A produção também ficará cerca de 5% abaixo dos níveis apontados pelas tendências de crescimento pré-covid-19.

Temos passado pelo que o Banco de Compensações Internacionais (BIS), em seu mais recente relatório anual, define como uma “uma parada repentina mundial”. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que, em termos mundiais, a diminuição das jornadas de trabalho no segundo trimestre tende a equivaler à perda de mais de 300 milhões de empregos em período integral.

O FMI enfatiza, corretamente, estas incertezas: a duração da pandemia e novos confinamentos nacionais ou locais; a magnitude do distanciamento social voluntário; a rigidez das novas regulamentações de segurança; a capacidade dos trabalhadores que perderam o emprego de garantir uma nova vaga; o impacto de mais longo prazo das suspensões de atividades econômicas e do desemprego; o grau de reconfigurações das cadeias de suprimentos; o provável prejuízo à intermediação financeira; e as dimensões dos novos transtornos dos mercados financeiros.

A resposta da política pública tem se caracterizado, corretamente, pela escala sem precedentes para tempos de paz. O FMI prevê que a dívida governamental vai aumentar em 19 pontos percentuais, em relação ao PIB, neste ano. As políticas dos bancos centrais não têm sido menos surpreendentes. O apoio das autoridades fiscais e monetárias também é de natureza revolucionária. Os governos despontaram como seguradoras de última instância. Os bancos centrais foram muito além de suas responsabilidades pelas operações bancárias. Onde foi necessário, eles assumiram a responsabilidade pelo sistema financeiro como um todo. De fato, com suas intervenções, inclusive contratos de swap com outros bancos centrais, o Federal Reserve assumiu responsabilidade por boa parte do sistema financeiro mundial.

Tempos de desespero determinam medidas desesperadas. Comandado por Agustín Carstens, ex-diretor do BC do México, o BIS endossa, justificadamente, as medidas dos bancos centrais. Seu relatório explica que os bancos centrais têm dois objetivos: “evitar prejuízos duradouros à economia ao garantir que o sistema financeiro continue a funcionar” e “restabelecer a confiança e apoiar os gastos privados”.

Este não é o fim das intervenções maciças. Pode até não ser o fim de seu começo. Temos enormes incertezas pela frente. Mas, como observou recentemente Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), citando Abraham Lincoln, “a melhor maneira de prever o seu futuro é criá-lo”.

Em vista disso, como deveríamos criar o futuro que queremos, um futuro no qual haja os menores prejuízos possíveis e a recuperação mais sólida praticável na direção de um futuro economicamente sustentável? Essa é a tarefa que os líderes deveriam assumir agora.

Para o futuro imediato, o desafio importante continua sendo minimizar os danos à saúde e à economia causados pela covid-19. Para alcançar isso, continua sendo essencial uma sólida cooperação.

Isso será especialmente importante para os países emergentes e em desenvolvimento, que ainda precisam de ajuda significativa. O FMI já aprovou programas para auxiliar 72 países em dois meses. Mas, apesar da melhoria dos mercados financeiros, serão necessários alívio da dívida e novo apoio oficial nos próximos meses e, quase certamente, nos anos à frente.

Na medida em que os regimes de confinamento sejam abolidos e as economias se recuperarem, será também essencial mudar as políticas públicas na direção de promover a recuperação e será vital evitar o erro do período que se seguiu à crise financeira de 2008, quando se migrou cedo demais da ajuda para a consolidação fiscal e o aperto monetário. Será necessário manter a política fiscal e monetária agressiva a fim de reconduzir recursos ociosos à utilização e de mudar as economias para novas atividades.

A nova economia na qual entraremos será - e deverá realmente ser - diferente da antiga. Ela terá de se beneficiar da revolução tecnológica atual rumo ao virtual e se distanciando da constante interação física. Terá também de proporcionar um futuro melhor às pessoas que foram mais duramente atingidas. Terá de acelerar a guinada na direção de uma economia mais sustentável.

Ao promoverem a sustentação da demanda, os formuladores de políticas públicas poderão tornar essas guinadas muito mais fáceis. Existem, sim, alguns riscos decorrentes dessas medidas. Mas eles são muito menores do que o resultado político e econômico de mais uma rodada de austeridade sustentada pelos beneficiários dos gastos públicos. Desta vez tem de ser diferente.

Sobretudo, o governo voltou, assim como voltou o anseio por competência. Os políticos anti-governo conseguiram transformar seus próprios fracassos em argumento: quem confiaria em um governo tocado dessa forma? Mas os que têm olhos conseguem ver que as coisas não têm de ser assim. Os contrastes entre a Alemanha de Angela Merkel e os EUA de Donald Trump ou o Reino Unido de Boris Johnson são simplesmente gritantes demais.

Pode ser que esta catástrofe traga uma vantagem: descobriremos não apenas que o governo voltou, mas também que a exigência de um governo sensato tocado por pessoas competentes voltou. Isso não tornaria válida a experiência de ter passado por tal calamidade. Mas não se deve desperdiçar o valor de uma crise. Seres humanos têm capacidade de aprender com experiências dolorosas. Façamos isso. (Tradução de Rachel Warszawski)

Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT

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