quinta-feira, 27 de abril de 2023

José Francisco Gonçalves* - Convergência

Valor Econômico

O decisivo em relação à demanda é o risco de deterioração abrupta da concessão de crédito, doméstico ou global

O andamento da proposta do novo arcabouço fiscal do governo, agora no Congresso, já ajudou a tirar pressão sobre a curva de juros futuros. Claro que o ambiente global ajudou, com expectativa de menos altas e queda mais rápida dos juros nos EUA.

Dados recentes de inflação ajudaram, com um pouco de torcida, pois os núcleos resistem bravamente. Nos EUA, a boa notícia foi alguma desaceleração na alta dos preços dos serviços, mas o núcleo superou o índice cheio. Parte disso se deve à crise bancária nos EUA e na Europa e ao início de enfraquecimento do mercado de trabalho por lá. Parte se deve à melhora das expectativas sobre a China, sendo que a elevação do risco de alta do preço do petróleo não afetou, por ora, as expectativas nos mercados globais.

Aqui, a concentração da alta nos preços administrados - pontual, portanto - e alívio nos preços dos alimentos - voláteis - indicam moderação, embora a expectativa para 2023 já esteja consolidada com a resistência dos preços dos serviços. Mas os preços no atacado e um câmbio mais favorável vão ajudar nas projeções dos preços dos bens transacionáveis, inclusive alimentos.

Lula e destacados membros do governo e do PT seguem esbravejando contra a autonomia do BC, seu presidente e o nível da Selic. Haddad reforça que a proposta de arcabouço fiscal é um passo da recuperação e que a arrecadação é decisiva, para além do óbvio. Campos Neto adotou termos mais brandos, até informais, sem alterar um grama do que o manual manda.

Os temas estão postos. A trajetória da relação dívida/PIB, referência do mercado, leva o foco para a arrecadação, o crescimento nominal do PIB, a trajetória dos juros nominais. Menos incerteza, na medida em que o número de premissas vai se reduzindo, assim como sua amplitude. Como não poderia deixar de ser, a proposta remete ao Congresso a definição de exceções à regra geral e ao tratamento dos investimentos.

Para o Copom, teríamos inflação de demanda, o que “requer moderação da atividade econômica para que os canais de política monetária atuem”, conforme a mais recente ata da reunião do Comitê. A moderação tem apoio nas medidas fiscais já implementadas, tanto a reoneração dos combustíveis como “o compromisso com a execução do pacote fiscal demonstrado pelo Ministério da Fazenda, e já identificado nas estatísticas fiscais”.

No horizonte da política monetária, a política fiscal já está ajudando via arrecadação. A recente derrota de Haddad na arrecadação adicional via certas importações claramente não ajuda.

Faz parte do jogo e está na conta. Assim como eventuais efeitos de medidas parafiscais, o que está parcialmente na conta. A alta dos juros futuros nos dias recentes não elimina a queda verificada desde fevereiro. Nem se deve apenas a temas domésticos.

Mas o decisivo em relação à demanda é o risco de deterioração abrupta da concessão de crédito, doméstico ou global. Ainda que o Copom indique que usará redução nos compulsórios em caso de crise bancária ou de crédito, o que não afetaria a taxa básica de juros, risco para os bancos e o setor não bancário existe nos níveis dos juros e seus efeitos sobre os balanços e a atividade das empresas e famílias.

O Copom condicionou a queda da Selic ao efeito da política monetária sobre o “excesso de demanda” e ao efeito da política fiscal sobre as expectativas. Horizonte relevante da política monetária e efeitos da nova regra fiscal, respectivamente.

Assim, o Copom enfatizou, sempre segundo a recente ata, “que não há relação mecânica entre a convergência de inflação e a apresentação do arcabouço fiscal, uma vez que a primeira segue condicional à reação das expectativas de inflação, às projeções da dívida pública e aos preços de ativos”. Ou seja, o arcabouço fiscal, na medida em que afete as expectativas, pode levar à convergência da inflação para as metas.

A relação entre o arcabouço fiscal e a inflação é mediada pelas expectativas, de modo que o “Comitê destaca que a materialização de um cenário com um arcabouço fiscal sólido e crível pode levar a um processo desinflacionário mais benigno através de seu efeito no canal de expectativas, ao reduzir as expectativas de inflação, a incerteza na economia e o prêmio de risco associado aos ativos domésticos”.

Como não se sabe o que é “sólido e crível”, a referência passa a ser “o prêmio de risco associado aos ativos domésticos”. O Copom será, parece, guiado pela curva de juros, pelo dólar, pelo CDS. E pelos modelos dos participantes da pesquisa Focus, além de seus próprios.

Como no regime de metas de inflação as expectativas são um aspecto fundamental do processo inflacionário, uma vez que afetariam preços e salários presentes e futuros, a ancoragem de expectativas seria um elemento essencial para a estabilidade de preços.

Assim, o Comitê “incorpora as expectativas em seu processo decisório, analisando-as, assim como incluindo-as como um dos fatores que afetam suas projeções de inflação”.

Sobre a desancoragem das expectativas, o Copom avisou que o processo se deu em parte pelo “questionamento sobre uma possível alteração das metas de inflação futuras”. A reancoragem depende de dois movimentos não excludentes: eventual reação das expectativas em intensidade menor do que uma elevação das metas de inflação e a aprovação de um arcabouço fiscal “sólido e crível”.

Outro destaque recente é o aperto adicional na concessão de crédito, fato esperado dada a elevação de juros já promovida. Espera-se ainda um aumento da inadimplência e maior desaceleração na concessão do crédito.

A atividade econômica em desaceleração, com estabilização defasada do mercado de trabalho, é inquestionável, mas a defasagem entre a recuperação do setor de serviços e dos demais setores sugere que a dinâmica inflacionária movida por “excesso de demanda” se deslocou para o setor de serviços. Portanto, a queda da atividade é necessária até que as expectativas sejam ancoradas.

Um exercício rápido sugere que a inflação de serviços depende fortemente do mercado de trabalho: a correlação básica indica que a taxa de inflação de serviços em torno de 4% corresponde a uma taxa de desocupação de 12%. Hoje, 7,8% e 8,4%, respectivamente. A queda é e será lenta. Mas será.

A “curva de juros futuros” tem cedido desde o início de março. O presidente do BC, Campos Neto, além de partilhar com Haddad a harmonia entre as políticas monetária e fiscal, passou a usar expressões como “boa vontade”, declarou que “A inflação caiu, mas as pressões permanecem. O componente de demanda da inflação no Brasil é relativamente forte”. Relativamente.

José Francisco Gonçalves é professor da FEA/USP.

 

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