quarta-feira, 22 de maio de 2024

Wilson Gomes – O paradoxo da intolerância

Folha de S. Paulo

Os 'crentes', mesmo se inflexíveis, podem não ser aceitos na democracia?

A tolerância é um princípio fundamental de convivência em sociedades pluralistas, nascido da convicção de que grupos antagônicos só podem viver juntos se aceitarem que suas crenças sobre a verdadeira fé não podem ser a base do contrato social.

Cada grupo pode continuar acreditando que cultua o único Deus, adota a única ideologia autêntica e os melhores valores, mas isso não pode influenciar as leis ou as instituições que organizam a vida em comum.

É impressionante que, nestes dias em que todos parecem ter crenças democráticas profundas, aumente o número de grupos que dizem que nem todos cabem em sua democracia ideal. É comum que ultraconservadores, teocratas e extremistas de direita façam listas de pessoas que deveriam ser expulsas da República ou, no mínimo, despojadas de direitos e respeito. Já faziam isso muito antes de se julgarem os verdadeiros democratas.

Muitos evangélicos conservadores ainda militam, lamentavelmente, para espoliar de direitos os homossexuais. O surpreendente mesmo é, contudo, perceber que muitos dos que se consideram progressistas tenham listas dessa natureza.

Dois episódios recentes, envolvendo Ludmilla e Anitta, cancelamentos e guerra cultural ilustram bem esse ponto. Os casos parecem indicar um conflito em curso entre evangélicos e identitários de esquerda que defendem o candomblé e a umbanda. Os progressistas cancelaram Ludmilla, enquanto os "crentes" retaliaram Anitta, tudo devidamente registrado, denunciado e debatido no espaço público digital.

Ao ler um desses inúmeros posts-manifestos sobre o assunto em que progressistas exortavam que "é necessário combater o preconceito e promover a aceitação e o respeito a todas as crenças", em defesa das religiões "de matriz africana", cometi a imprudência de afirmar que esse princípio, legítimo, não cobre apenas um tipo de religião, mas todas.

Inclusive, é protegido por ele o cristianismo popular conservador dos "crentes", que muitos identitários de esquerda se permitem desprezar, por mais antagônicos que possam ser os interesses destes últimos em face dos grupos que os identitários querem defender.

Descobri, então, que para muitos autodenominados progressistas, confessadamente ou não, não pode haver lugar para crentes, conservadores e reacionários na democracia. Muitos "democratas" acreditam ter o direito de selecionar ideologias, partidos, religiões, modos de vida merecedores de respeito e proteção.

De todos os lados surgem estranhos argumentos para sustentar essa convicção. Primeiro, os de suposta base empírica, que afirmam com impressionante certeza que nas favelas e grotões brasileiros templos de candomblé ou umbanda são destruídos por seus concorrentes cristãos.

Depois vêm os argumentos, muito populares na militância progressista, que comparam sofrimentos para daí derivar direitos: se não existe depredação de igrejas evangélicas, se os crentes não são historicamente oprimidos, não se pode exigir que sejam protegidos pelo mesmo princípio que manda aceitar e respeitar todas as crenças.

Ora, a competição de sofrimentos e o sofrimento histórico como fonte de direitos não são argumentos legítimos. Em uma democracia, uma religião deve ser respeitada não apenas quando seus templos são queimados ou seus membros arriscam a vida, mas porque nesse regime a tolerância e o pluralismo são regras de ouro. Direitos não são privilégios; são simplesmente direitos.

O terceiro argumento vem do estranho princípio da tolerância seletiva, que, segundo uma crença comum, seria derivado do "paradoxo da tolerância" do filósofo austríaco Karl Popper. Pobre Popper! O que era um paradoxo virou uma doutrina.

O experimento mental do filósofo questionava se, afinal, uma tolerância absoluta não se tornaria insustentável, pois toleraria as forças intolerantes que a destruiriam por dentro. Donde se conclui que a única coisa que o princípio da tolerância não protege é, justamente, a intolerância.

Mas o militante entende que se autoriza aqui uma espécie de intolerância controlada, que só coubesse a nós exercê-la e sempre segundo o nosso infalível escrutínio. Como se algo assim não abrisse automaticamente uma nova espiral de intolerância. E como se não fosse fácil demais a partir desse ponto inscrever, entre os intoleráveis, os fascistas, comunistas, subversivos etc., categorias nas quais convenientemente colocaríamos nossos adversários ou simplesmente quem tem ideias, modos de vida e comportamentos que consideramos errados e ameaçadores.

Toda tolerância seletiva é basicamente uma intolerância que não ousa assumir o que realmente é.

 

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