Folha de S. Paulo
Os 'crentes', mesmo se inflexíveis, podem não
ser aceitos na democracia?
A tolerância é um princípio fundamental de
convivência em sociedades pluralistas, nascido da convicção de que grupos
antagônicos só podem viver juntos se aceitarem que suas crenças sobre a
verdadeira fé não podem ser a base do contrato social.
Cada grupo pode continuar acreditando que
cultua o único Deus, adota a única ideologia autêntica e os melhores valores,
mas isso não pode
influenciar as leis ou as instituições que organizam a vida em
comum.
É impressionante que, nestes dias em que todos parecem ter crenças democráticas profundas, aumente o número de grupos que dizem que nem todos cabem em sua democracia ideal. É comum que ultraconservadores, teocratas e extremistas de direita façam listas de pessoas que deveriam ser expulsas da República ou, no mínimo, despojadas de direitos e respeito. Já faziam isso muito antes de se julgarem os verdadeiros democratas.
Muitos evangélicos conservadores ainda
militam, lamentavelmente, para espoliar de direitos os homossexuais. O
surpreendente mesmo é, contudo, perceber que muitos dos que se consideram
progressistas tenham listas dessa natureza.
Dois episódios recentes, envolvendo Ludmilla e Anitta,
cancelamentos e guerra cultural ilustram bem esse ponto. Os casos parecem
indicar um conflito em curso entre evangélicos e identitários de esquerda que
defendem o candomblé e a umbanda. Os progressistas cancelaram Ludmilla,
enquanto os "crentes" retaliaram Anitta, tudo devidamente registrado,
denunciado e debatido no espaço público digital.
Ao ler um desses inúmeros posts-manifestos
sobre o assunto em que progressistas exortavam que "é necessário combater
o preconceito e promover a aceitação e o respeito a todas as crenças", em
defesa das religiões "de matriz africana", cometi a imprudência de
afirmar que esse princípio, legítimo, não cobre apenas um tipo de religião, mas
todas.
Inclusive, é protegido por ele o cristianismo
popular conservador dos "crentes", que muitos identitários de
esquerda se permitem desprezar, por mais antagônicos que possam ser os
interesses destes últimos em face dos grupos que os identitários querem
defender.
Descobri, então, que para muitos
autodenominados progressistas, confessadamente ou não, não pode haver lugar
para crentes, conservadores e reacionários na democracia. Muitos
"democratas" acreditam ter o direito de selecionar ideologias,
partidos, religiões, modos de vida merecedores de respeito e proteção.
De todos os lados surgem estranhos argumentos
para sustentar essa convicção. Primeiro, os de suposta base empírica, que
afirmam com impressionante certeza que nas favelas e grotões brasileiros
templos de candomblé ou umbanda são destruídos por seus concorrentes cristãos.
Depois vêm os argumentos, muito populares na
militância progressista, que comparam sofrimentos para daí derivar direitos: se
não existe depredação de igrejas evangélicas, se os crentes não são
historicamente oprimidos, não se pode exigir que sejam protegidos pelo mesmo
princípio que manda aceitar e respeitar todas as crenças.
Ora, a competição de sofrimentos e o
sofrimento histórico como fonte de direitos não são argumentos legítimos. Em
uma democracia, uma religião deve ser respeitada não apenas quando seus templos
são queimados ou seus membros arriscam a vida, mas porque nesse regime a
tolerância e o pluralismo são regras de ouro. Direitos não são privilégios; são
simplesmente direitos.
O terceiro argumento vem do estranho
princípio da tolerância seletiva, que, segundo uma crença comum, seria derivado
do "paradoxo da tolerância" do filósofo austríaco Karl Popper. Pobre
Popper! O que era um paradoxo virou uma doutrina.
O experimento mental do filósofo questionava
se, afinal, uma tolerância absoluta não se tornaria insustentável, pois
toleraria as forças intolerantes que a destruiriam por dentro. Donde se conclui
que a única coisa que o princípio da tolerância não protege é, justamente, a
intolerância.
Mas o militante entende que se autoriza aqui
uma espécie de intolerância controlada, que só coubesse a nós exercê-la e
sempre segundo o nosso infalível escrutínio. Como se algo assim não abrisse
automaticamente uma nova espiral de intolerância. E como se não fosse fácil
demais a partir desse ponto inscrever, entre os intoleráveis, os fascistas,
comunistas, subversivos etc., categorias nas quais convenientemente
colocaríamos nossos adversários ou simplesmente quem tem ideias, modos de vida
e comportamentos que consideramos errados e ameaçadores.
Toda tolerância seletiva é basicamente uma
intolerância que não ousa assumir o que realmente é.
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