Valor Econômico
Pretensões americana e brasileira ainda serão testadas
As seções de votação tinham fechado as portas
havia 23 minutos na Venezuela quando a vice-presidente americana Kamala Harris
foi ao X para fazer três afirmações: a eleição havia sido histórica, a vontade
do povo venezuelano deveria ser respeitada e os EUA, “a despeito de muitos
desafios”, continuariam lutando por um futuro mais democrático, próspero e
seguro naquele país.
A líder da oposição, María Corina Machado,
ainda não havia vindo a público para denunciar a falta de acesso aos boletins
de urna e anunciar a vitória de seu candidato, Edmundo González. Seis horas
depois do encerramento da votação é que o presidente do Comitê Nacional
Eleitoral, Elvis Amoroso, decretaria a vitória de Nicolás Maduro.
Nada disso impediu que Kamala antecipasse um tom que, a despeito de manifestar solidariedade com a oposição, parecia de conformidade com um resultado adverso. As fronteiras americanas são responsabilidade do secretário de Segurança Interna, Alejandro Mayorkas, mas a missão dada pelo presidente Joe Biden a sua vice, de endereçar soluções para a pobreza, violência e falta de oportunidades nos países vizinhos que agravam a imigração ilegal, fez com que a vice se tornasse o principal alvo dos republicanos no tema.
A moderação de Kamala também se reproduziu
nos pronunciamentos do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken. Na véspera
da eleição, ele havia se recusado a fazer um pré-julgamento. Fechadas as urnas,
ele expressou “sérias preocupações” com o anúncio do CNE e instou-o a agir de
maneira transparente. Subiu o tom, mas sem carregar nas tintas da condenação.
A cautela, na avaliação de setores do governo
brasileiro, pauta-se pelo receio de que o endurecimento americano, ao agravar a
tensão nas fronteiras, cobre um preço da candidatura democrata. O governo
Donald Trump esticou a corda na imposição de sanções e no apoio ao
autoproclamado governo Juan Guaidó. O resultado seria colhido pelo sucessor.
Dados do Wola (Escritório de Washington sobre
a América Latina) dão conta de que, em 2021, menos de 3 mil venezuelanos
cruzaram o estreito de Darien, entre a Colômbia e o Panamá. Em 2023 foram 328
mil. Depois de Colômbia e Peru, os EUA são terceiro destino dos venezuelanos,
com uma comunidade de cerca de 800 mil.
Na sexta-feira passada, o “Washington Post”
trouxe à tona a existência de documentos sigilosos do Departamento de Segurança
Interna dando conta de que o governo Trump foi advertido sobre os efeitos
explosivos da imigração decorrente de sanções extremadas.
Um dos autores da advertência, o
subsecretário de assuntos políticos do Departamento de Estado do governo Trump
- e embaixador do EUA no Brasil durante o governo Barack Obama - Thomas
Shannon, confirmou-a ao jornal.
Em função das sanções, a economia venezuelana
teve um tombo de 71% entre 2012 e 2020, o maior de um país fora de zona de
guerra da história moderna. No ano passado, com o acordo de Barbados, mediado
por Brasil, Colômbia e Noruega com vistas a assegurar o compromisso de Maduro
por eleições justas e transparentes, uma parte das sanções foi suspensa.
Seis meses depois, porém, foram reimpostas, o
que não impediu a gigante americana Chevron e outras petrolíferas como Repsol e
Eni, de retomar suas operações e anunciar investimentos de longo prazo.
A vista grossa em relação à retomada desses
investimentos passa pela segunda razão pela qual os EUA, na visão do governo
brasileiro, resolveram reagir com cautela aos sinais de manipulação do
resultado eleitoral para além da recusa ao registro eleitoral aos milhões de
venezuelanos que vivem no exterior e à candidatura de Corina Yoris, de
oposição.
Com as tensões crescentes com a Rússia, mais
do que explicitadas na guerra da Ucrânia, e a entrada da China no teatro de
operações do Oriente Médio, os EUA não podem se dar ao luxo de isolar a
Venezuela a ponto de deixar o país à mercê daqueles países. Acresça-se ainda o
esgotamento iminente de suas reservas petrolíferas e estão dadas as razões
pelas quais as hostilidades americanas em relação à Venezuela parecem ter
chegado a um ponto limítrofe.
Sem relações diplomáticas com a Venezuela
desde 2019, quando Maduro reagiu ao reconhecimento de Trump a Guaidó, os EUA
dependem de mediadores em campo. Além dos 2 mil quilômetros de fronteira, dos
cerca de 500 mil venezuelanos que vivem no país e da necessidade de retomada de
um intercâmbio comercial hoje incipiente, abriu-se uma brecha para o Brasil.
Biden ainda não havia renunciado à reeleição
quando Celso Amorim, em meados de julho, esteve em Washington, onde se
encontrou com o conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan. O assessor
internacional da Presidência resolveu se expor como a única autoridade
estrangeira com seu status, em Caracas, durante a eleição. Nesse momento, a
estratégia de Maduro já estava clara.
A eleição venezuelana estava marcada para
dezembro, um mês depois da americana. Ao antecipá-la para julho, Maduro anteviu
os constrangimentos que os EUA teriam para contestar, de maneira mais
radicalizada, o resultado de sua eleição durante a campanha americana e a
transformou em álibi de sua terceira posse.
Esse xadrez se move por cálculos, mas não
pela aritmética. Por isso as pretensões americana e brasileira ainda serão
testadas pela resiliência da oposição venezuelana, pelas respectivas reações
domésticas e pela capacidade de Maduro de dobrar o preço que pretende cobrar
para que a comunidade internacional não embarque na desestabilização de um
regime que persegue adversários, cala dissidentes e ainda não provou ser capaz
de fazer eleições transparentes.
Um comentário:
Verdade.
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