Christopher M. Clark confirma o personagem
como o criador de inúmeras imagens linguísticas e uma delas é a que atribui aos
EUA o seguinte: “A graça de Deus tem um lugar especial em seu coração para
proteger os bêbados, os loucos e os Estados Unidos da América”.
A despeito de tudo, pode-se dizer que alguma razão há, porque à medida que se aproximava a próxima eleição presidencial em novembro, que os anos alcançaram o mandatário Joe Biden, que, enfraquecido pelo peso da idade, tomado por lapsos de toda sorte, parecia incapaz de encarnar a esperança no futuro, apesar do exercício quase findo de uma boa presidência, com mais virtudes do que erros, com decência e dignidade. Trump, até então seu adversário que nada tem de um lírio, que comete erros não forçados com uma alta frequência (na verdade não se sabe se são produto da idade ou da sua ignorância), parecia mais forte e vigoroso, brincava de gato e rato com Biden, sem piedade, com insultos e sarcasmos, usando apelidos infantis, como destacou Obama, e desfilava seguro da sua vitória, acentuando com desdém a sua mensagem reacionária, ameaçadora e exclusiva.
Mas um acontecimento mudou tudo: a
desistência de Biden à nomeação democrata e o empoderamento quase instantâneo
de uma mulher que demonstrou uma capacidade notável, Kamala Harris. Em poucos
dias transformou-se numa esperança no futuro, com inteligência e graça e com
uma firmeza civilizada que abriu uma ilusão não só para os EUA, mas para todos
os democratas do mundo que enfrentam com angústia o futuro da um mundo
turbulento e inseguro, perigoso, com duas guerras em curso, nas quais se
fortalecem posições autoritárias e violentas.
O perigo de que um personagem como Trump, que
de fato mostrou o seu desprezo pela alternância democrática, volte a liderar a
principal potência mundial não está, no entanto, evitado. Vivemos tempos
voláteis, de mudanças aceleradas, em que muitos setores sociais se percebem,
com razão, como excluídos e florescem os demagogos e as suas promessas
simplistas como acontece também nas nossas eleições municipais. As corridas
eleitorais são estreitas e difíceis.
Alexis de Tocqueville, o grande analista
francês do alvorecer dos EUA, destacou que “é mais fácil para o mundo aceitar
uma simples mentira do que uma verdade complexa”.
Mas isto não é inevitável como parecia há
apenas algumas semanas. Os números mudaram, as frases bélicas foram atenuadas e
renasceu o entusiasmo de quem não insulta, raciocina e não considera o
adversário um inimigo.
O sorriso largo de Kamala e as suas propostas
destinadas a combinar mais liberdade, mais pluralismo e mais igualdade
iluminaram uma perspectiva sombria para a democracia. A diferença entre as
vozes racionais e humanistas que os rodeiam e a face taciturna de um
messianismo brutal apresentado por Trump e pelos seus seguidores é enorme. Não
está totalmente claro se ele mudará a sua estratégia eleitoral, mas não lhe
será fácil encarnar uma personagem com fins intelectuais mais refinados.
Os resultados dessas eleições não serão
estranhos ao nosso futuro.
Vivemos tempos difíceis, com um grande abismo
entre os avanços científicos e tecnológicos no mundo instrumental e a
capacidade de convivência pacífica que gere uma humanidade melhor e um planeta
sustentável e civilizado no mundo normativo.
Nem Zygmunt Bauman se enganou quando falou de
tempos líquidos, nem Ulrich Beck quando falou da sociedade de risco, só que na
atual desordem geopolítica a liquidez, a volatilidade, a desigualdade e o risco
tornam-se cada vez mais difíceis de gerir. A atual fragmentação económica torna
o mundo mais inóspito, as diferenças mais irredutíveis, a violência maior e
torna-se cada vez mais difícil conviver.
A política e especialmente o sistema político
democrático, que recordemos mais uma vez, não é majoritário no mundo, exige
cada vez mais esforço para que os seus valores sobrevivam e se adaptem aos
novos desafios que mudarão radicalmente o nosso modo de vida.
Se isto não for alcançado, a tentação
autoritária crescerá, os sujeitos políticos tenderão a desaparecer e as
identidades fechadas, os fanatismos e finalmente as guerras florescerão. A
coexistência baseada numa démarche civilizacional com valores partilhados
será restringida.
Já temos Scrooge’s de todas as cores no
poder, não precisamos de mais Putins, mais Netanyahus, mais Khameneies, mais
Orbán, mais Erdogans, mais Maduros, mais Bukeles ou mais Ortegas, só para citar
alguns.
Neste contexto, é muito importante que no
Brasil não percamos uma visão realista e ponderada do que avançamos e
alcançamos como país, bem como dos problemas e desafios que enfrentamos,
evitando percepções simplistas ou fanáticas e ideias cruas.
Para enfrentar os problemas e desafios de
hoje e de amanhã, todos precisamos uns dos outros. Há mais de dez anos
cometemos demasiados erros e enganos, o que nos levou à estagnação. Só a Frente
Democrática nos impediu de nos afundarmos numa segunda mediocridade em 2022.
Precisamos seguir o caminho de agora
significativamente e urgentemente combater eficazmente o crime organizado e
globalizado, fortalecer a nossa democracia através de um adversário
construtivo, que combina com o debate e a crítica bem como uma procura sincera
de acordos. Só assim o Brasil seguirá o caminho que o levou ao G8, G20 e a
COP30.
Não são tempos de mesquinhez e de brigas, esperamos que todos os partidos de orientação democrática, sejam de esquerda, de centro ou de direita, para além da competição eleitoral, compreendam que um desacordo infundado permanente e o mau humor degradam a vida democrática e só favorecem, como bem sabemos, a cultura autocrática de vários matizes.
[1] Presidente do
Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da
UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.
Um comentário:
Muito bom! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar seu trabalho. Que tal mais Bolsonaros? Na cadeia...
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