Correio Braziliense
O ministro do Supremo questionou a dosimetria
das penas, a validade da delação premiada de Mauro Cid e o enquadramento a
priori de todos os réus nos mesmos crimes
Ao votar na 1ª Turma do Supremo Tribunal
Federal (STF), nesta quarta-feira, a favor do relatório do ministro Alexandre
de Moraes, que acolheu a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais
sete acusados de tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, o
ministro Luiz Fux fez um novo contraponto ao entendimento da maioria dos
colegas e, enigmático, anunciou que fará uma interpretação “dialética” do
processo contra os oito réus, entre os quais o ex-presidente e quatro oficiais
generais.
Fux também votou a favor da transformação dos acusados do 8 de janeiro de 2023 em réus. São eles Alexandre Ramagem, deputado federal e ex-diretor da Abin; Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; e os generais de Exército Augusto Heleno, ex-ministro do GSI; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da defesa; e Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro, além de Bolsonaro e do tenente-coronel e ex-ajudante de ordens da Presidência do Mauro Cid, que fez delação premiada.
No seu voto, Fux fez referência ao seu pedido
de vistas do processo contra a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, também
na 1ª Turma, por participação nos atos golpistas de 8 de Janeiro. Ela foi
reconhecida após vandalizar o monumento A Justiça, no qual escreveu “perdeu,
mané” com o batom. Moraes apresentou um relatório no qual propõe a pena de 14
anos para Débora, que está presa preventivamente. O julgamento estava dois a
zero, com o voto do ministro Flávio Dino, quando foi suspenso.
Entretanto, Fux deixou muito claro que
pretende interpretar os fatos de maneira circunstanciada e “dialética” quanto à
culpabilidade de cada réu no decorrer do processo. Descartou uma posição
definida em relação à igual participação dos acusados na conspiração golpista,
como um grupo organizado e coeso. No início do julgamento, na terça-feira, já
havia questionado o fato de o caso ser julgado na Turma e não no plenário da
Corte, e ainda levantou dúvidas sobre a legalidade da delação premiada do
coronel Mauro Cid.
Na sua essência, o voto de Alexandre de
Moraes segue a tradição positivista. Essa doutrina entende o Direito como um
conjunto de normas criadas por autoridade legítima, válidas independentemente
de seu conteúdo moral. O foco é na lei posta (ius positum), e não em princípios
éticos ou naturais: “O que importa é o que está escrito na lei, não o que se
acha justo”. Esse entendimento predomina na Justiça brasileira desde a
Constituição de 1891, logo após a Proclamação da República, que adotou o lema
positivista na bandeira: “Ordem e Progresso”.
Negação da negação
No Judiciário e nos concursos públicos, o
positivismo está muito presente. Juízes quase sempre tomam decisões com base
estrita na letra da lei; valoriza-se muito o direito codificado, sobretudo as
regras do “devido processo legal”, às vezes, mais até do que o mérito, como
aconteceu na Lava-Jato. A lógica formal é que prevalece. Hoje, esse positivismo
jurídico é criticado por aplicar a lei de forma mecânica e ignorar contextos
sociais, históricos ou desigualdades.
Depois da Constituição de 1988, houve um
movimento para superar o positivismo rígido como fonte principal do Direito,
juízes passaram a ter mais liberdade e responsabilidade; ganharam força os
argumentos morais e sociais. E de onde vem a tal “dialética” do ministro Fux?
Sua origem é o método criado pelo filósofo grego Aristóteles (384 a.C.- 322
a.C.), discípulo de Platão (A República), que foi desenvolvido pelo idealismo
de Friedrich Hegel (1770-1831) e, depois, pelo materialismo de Karl Marx
(1818-1883). Todos buscaram explicar o movimento, a transformação e o
desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento.
As “leis da dialética” são a unidade e luta
dos contrários, pares de opostos que estão em constante tensão e interação, o
que impulsiona a mudança; a transição da quantidade em qualidade (quando atinge
um certo limite, ocorre uma transformação qualitativa, como a água aquecida ou
congelada); e a negação da negação (negação não é simples destruição, é uma
superação que conserva aspectos do que foi negado (“aufhebung”, em alemão).
No julgamento de Bolsonaro e os seus
auxiliares há uma tensão essencial entre acusação e defesa, entre direito
positivo e justiça material, entre lei escrita e interpretação. Para Fux, a
verdade surgirá da confrontação dialética entre as partes contrárias. Pequenas
decisões, provas ou interpretações vão se acumular e, em certo ponto, isso pode
alterar qualitativamente a percepção do caso.
O ministro Fux questionou a dosimetria das
penas, a validade da delação premiada do coronel Mauro Cid e o enquadramento a
priori de todos os réus nas mesmas acusações: tentativa de abolição violenta do
Estado democrático de direito, golpe de Estado, organização criminosa, dano
qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombados,
crimes sujeitos a penas superiores a 14 anos. Na dialética do direito penal,
uma decisão judicial pode negar uma interpretação anterior, mas essa nova posição
preservará elementos do passado enquanto os supera. A negação da negação do
direito é necessária para o restabelecimento da ordem jurídica violada.
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