Folha de S. Paulo
O alargamento de conceitos como o de golpe de
Estado, com adjetivações, como em golpe parlamentar, torna-os inúteis
A transposição de conceitos entre ciência
política e direito leva a equívocos incontornáveis
Que o debate público está cada vez mais empobrecido, devido à polarização, é algo amplamente reconhecido. Em relação a questões como fascismo, democracia e golpes, o problema potencializa-se exponencialmente devido à inexistência de consensos sobre seus significados. A dificuldade já existe no seio da própria comunidade de cientistas políticos, mas é mitigada pelo reconhecimento das próprias divergências entre definições alternativas. O problema se exacerba no debate público pela ausência de vocabulário mínimo partilhado socialmente.
O problema não é trivial ou acadêmico. O
problema é a transposição de conceitos entre domínios acadêmicos (da ciência
política para o direito, e vice-versa). A definição
do que é golpe de Estado, por exemplo, tem implicações sobre tipos
penais e dosimetrias, ou sanções internacionais. A responsabilização
política, por sua vez, nada tem a ver com responsabilização penal. Para não
falar da confusão entre análises positivas de fenômenos e análises normativas
ou jurisdicionais.
Na realidade, o problema não é novo. Karl
Loewenstein em "Brazil under Vargas", publicado em 1942 (dedicado a
seu grande amigo Thomas Mann), concluiu sua análise em capítulo intitulado
"Um Discurso sobre Terminologia Política: O Brasil é um estado fascista?",
afirmando que o regime era claramente autoritário mas não totalitário ou
fascista: "Nada poderia estar mais longe da verdade do que a suposição de
que o Brasil sob Vargas é totalitário, no sentido de sacrificar a esfera do
indivíduo ao Estado Leviatã. A vida privada, o direito privado, a vida
empresarial e a cultura não são afetadas pelo regime se não obstaculizam as
políticas públicas".
O autor de "Hitler’s Germany"
(1939) , ele próprio perseguido pelo regime, sabia do que estava falando.
Loewenstein foi o principal articulador intelectual da ideia de democracia
militante e teve influência na elaboração da constituição alemã de 1949.
Conhecedor da Itália de Mussolini afirmou "no exterior o Estado Novo é
frequentemente chamado de fascista. Mais uma vez, um termo equivocado que
precisa de correção." E se perguntava, entre outras coisas, como um regime
que não estava sequer assentado em um partido político poderia ser chamado de
fascista? "Fascismo no papel" —algumas leis, reconhecia, mostravam a
influência do fascismo— "não converte o regime em fascista".
O mesmo vale para o conceito de golpe. Marsteinstredet e Malamud mostram que a explosão do
uso da expressão "golpe" com adjetivos —golpe branco, golpe
parlamentar— ocorreu em proporção inversa ao desaparecimento virtual de golpes
de Estado no sentido clássico. O abuso tornou o conceito imprestável. Os dados
do Illinois Data Bank para o período entre 1945 e 2024 mostram que os golpes
—sobretudo os bem sucedidos praticamente desapareceram— caíram de medias anuais
superiores a 11 para 1, entre 1975 e 2020, e se restringem ao continente
africano.
O próprio uso da expressão é politicamente
determinado, como revelou Kushima et al (2023) cobrindo todos os
casos entre 1975 e 2014: golpe é a expressão utilizada por quem estava no
poder; e revolução, movimento ou liberação por quem estava na oposição.
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