JOSUÉ, O DESPERDÍCIO, A FOME
Editorial
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No dia 5 de setembro próximo o pernambucano Josué de Castro estaria completando 100 anos de idade e não teria muitos motivos para festejar. Ele veria, por exemplo, que o tema central de sua grande obra – a fome que queria ver erradicada –, se irradia com a rapidez que a mundialização da economia acelera e no Brasil continua matéria-prima de experiências de um laboratório social de profundos contrastes. Até justifica a criação de um Ministério, de políticas públicas como Fome Zero e criação de bancos de alimentos para combater o desperdício. Estaria também o autor de Geografia da fome envolvido em um cenário bem maior, por força da globalização e de sua autoridade reconhecida internacionalmente, neste momento em que a crise de alimentos acende a luz vermelha no mundo, em parte pelo impacto no bolso dos consumidores mais ricos, quando até recentemente ela só parecia ceifar vidas nos países mais pobres, em especial na África, e nos grandes bolsões de miséria do Ocidente, como o Nordeste brasileiro.
Bastou a escassez de alimentos atingir o mercado e o bolso dos mais ricos em todo mundo para ser objeto de extensas discussões internacionais. Quando os mercados estiverem de novo abastecidos e com os preços contidos no primeiro mundo, o tema certamente voltará a ser exclusivo do terceiro mundo, em que também se situam os chamados emergentes, como é o caso do Brasil, da China e Índia. Porque, apesar desse capítulo circunstancial para os mais ricos, o problema da fome entre nós persiste com aquelas características epidêmicas e endêmicas de que falava Josué de Castro. E esse mal crônico está sendo quantificado e exposto em um grande quadro pela Organização das Nações Unidas (ONU), com uma abordagem de natureza prática, produto da ignorância e do atraso na capacidade de organizar a infra-estrutura para toda a cadeia produtiva, o que representa para o Brasil jogar no lixo 70 mil toneladas de alimentos a cada ano.
Assim, o problema do desperdício de alimentos é colocado em primeiro plano e cobra, urgentemente, uma nova cultura, até porque um país que tem como ação de governo um programa chamado Fome Zero não pode permitir que 64% do que planta se perca na cadeia: colheita, transporte, processamento e hábitos alimentares. E é isso o que constata a ONU, com o aporte da Confederação Nacional da Agricultura que informa: somente no transporte rodoviário de grãos perdemos anualmente algo em torno de R$ 3 bilhões. O IBGE acrescenta a esse quadro um outro dado assombroso: entre 1996 e 2003 houve safras em que as perdas foram superiores às exportações, uma insensatez nacional em que o milho tem lugar privilegiado.
Estudos da Embrapa mostram, igualmente, como estão visíveis e identificadas as causas das perdas de alimentos, com os danos que os produtos sofrem ao longo da cadeia produtiva, do campo à mesa dos brasileiros. Esses absurdos se situam no plano de produção e distribuição, mas há um componente de péssimos hábitos alimentares, que acrescentam mais desperdício, mais prejuízo, mais persistência de fome em meio à abundância. A esse problema se acrescenta o rigor da lei que regula doações e estabelece que os doadores podem responder a processos civis e criminais se o alimento doado prejudicar a saúde de quem recebeu. Um desestímulo aos restaurantes, lanchonetes e hotéis onde o processo de seleção dos produtos sempre deixa muitas sobras.
Diante de tudo isso, fica a lição de que Josué de Castro é cada vez mais atual, mesmo quando há informações técnicas suficientes para mudar a forma com que vem sendo abordada a cadeia produtiva de alimentos, e que é preciso tratar como política pública o aproveitamento dos produtos descartados, mas saudáveis, nas Ceasas e feiras livres, e cumpre à sociedade um papel importante: o da consciência de que a comida que sobra em uns pratos poderia estar noutros que nada têm, jamais ampliar os gráficos do desperdício de alimentos, hoje no patamar dos 60% do lixo jogado fora pelos brasileiros.
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