SEM RUPTURAS
Lula e FHC na transmissão de cargo em janeiro de 2003. Há uma linha de continuidade entre os dois governos, e isso é sinal de maturidade democrática
O debate de Lula e FHC tem apelo eleitoral, mas ignora o s avanços obtidos com a continuidade dos dois governos
Isabel Clemente
A disputa política entre o PT e o PSDB ganhou na semana passada os ares de uma rixa adolescente, em que meninos competem entre si para mostrar quem é melhor ou faz mais.
Inflados pela aprovação recorde do governo, os petistas querem transformar a campanha presidencial da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, numa variação do bordão preferido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Nunca antes na história deste país”. O PT segue a estratégia de uma disputa plebiscitária contra o PSDB em que pretende confrontar as realizações do governo Lula com as do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que deixou o Palácio do Planalto com a popularidade em baixa. Na semana passada, FHC reagiu. Em artigo, FHC acusou Lula de “inventar inimigos e enunciar inverdades”, de se deixar contaminar “por impulsos tão toscos e perigosos” e topou o desafio. “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”, escreveu FHC.
O artigo gerou resposta de Dilma, que disse que vai insistir nas comparações; réplica de FHC, que retrucou afirmando que “Dilma não é líder, mas reflexo de um líder”; e outras declarações como a do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que, num tom machista, disse que Dilma é uma “liderança de silicone, bonita por fora, mas falsa por dentro”. Nesta fase da campanha, em que os competidores ainda estão em aquecimento para entrar no páreo, a refrega da semana passada serviu para os dois lados marcar o chão com giz. O artigo de FHC teve também o propósito de incitar os tucanos a sair em defesa de seu governo, coisa que eles fizeram envergonhadamente nas duas últimas eleições presidenciais em que Lula se saiu vitorioso sobre os candidatos do PSDB: José Serra em 2002 e Geraldo Alckmin em 2006. Os petistas saíram do bate-boca achando que venceram o embate. Avaliam que FHC mordeu a isca e levou a discussão para o terreno no qual eles querem travar a disputa presidencial. Já os tucanos querem transformar a eleição numa comparação entre a biografia de Serra – economista doutorado pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, deputado federal, senador, ministro, prefeito, governador de Estado – e o currículo de Dilma – economista sem mestrado nem doutorado, secretária de Estado, ministra e candidata sem eleição anterior disputada.
A tese dos petistas é discutível. Em primeiro lugar, o efeito eleitoral de um debate sobre o governo FHC pode ser mais reduzido do que eles imaginam – os eleitores votam, em geral, mais preocupados com o futuro do que com o passado. Em segundo lugar, uma campanha plebiscitária, baseada numa comparação entre dois governos, pode fazer algum sentido eleitoral, mas resvala num debate impregnado de artificialismo. Além de os dois governos terem convivido com realidades domésticas e internacionais diferentes, que influenciaram em suas prioridades, decisões e resultados, os analistas isentos das paixões partidárias concordam no diagnóstico de que há uma linha contínua entre os mandatos de FHC e Lula, com diferenças de ênfase, mas a mesma matriz na social-democracia.
A continuidade é flagrante na área econômica, onde Lula mantém, há sete anos, o ex-tucano Henrique Meirelles no comando do Banco Central como o avalista de uma política baseada no tripé do câmbio flutuante, disciplina fiscal e metas de inflação baixa iniciada por FHC. Mas é visível também na área social, em que Lula se vangloria de seus maiores feitos. “Na área social, o governo Lula aprimorou e ampliou boas políticas públicas iniciadas na gestão anterior. O Bolsa Família reuniu sob um mesmo guarda-chuva outras bolsas criadas por Fernando Henrique. Fernando Henrique plantou e Lula colheu bem numa conjuntura internacional mais favorável”, diz o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro e autor de alguns dos estudos mais festejados pelos petistas, como os que apontam a redução da desigualdade social e a emergência de uma nova classe média no país.
Muitos dos problemas do Brasil nos governos FHC e Lula também continuaram os mesmos, como a carga tributária e a taxa de juros elevadas e o investimento público baixo que contribuíram para índices de crescimento econômico mais baixos que os de outros países emergentes – apesar da melhora em anos recentes. Sob o nome de Avança Brasil, no governo de FHC, ou PAC, no governo Lula, o investimento público brasileiro tem oscilado em torno de 2% do PIB, muito aquém das necessidades do país. “O presidente Lula aumentou os gastos correntes do governo, o que tem impacto positivo num momento de crise, mas investimento tem princípio, meio e fim, além de dar mais retorno à sociedade”, diz o economista Cláudio Salm, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de um estudo que mostra que os avanços no acesso da população mais pobre a água encanada, rede de esgoto, luz elétrica, telefone fixo e geladeira foram constantes nos governos FHC e Lula.
Essa continuidade é um sinal de avanço e de maturidade democrática do país. “Numa democracia, não há espaço para grandes rupturas”, diz a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida, da Universidade de São Paulo. Um dos grandes méritos do presidente Lula foi ter compreendido isso – e boa parte das conquistas recentes do Brasil se deve à estabilidade institucional e ao consenso político sobre os rumos do país, apesar das divergências partidárias.
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