DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Democracia envolve conflito, mas supõe cooperação, exige respeito entre contendores e capacidade de entendimento quando estiverem em jogo interesses públicos
As eleições de 2010 estão trazendo à tona sinais preocupantes. Por um lado, a campanha eleitoral mantém um tom monocórdio, com os principais candidatos repetindo quase à exaustão os mesmos argumentos sem despertar verdadeiramente o entusiasmo dos eleitores para os desafios que a sociedade brasileira enfrentará nos próximos anos. Por outro, a competição pelo poder perdeu muito do seu vigor, em grande parte, por causa da exagerada antecipação da campanha que o presidente da República protagonizou, com o uso indevido (e, em alguns casos, ilegal) de recursos simbólicos que a sua dupla função de chefe do governo e de chefe do Estado lhe atribui.
Há mais de dois anos Lula age com menosprezo, e de modo abusivo, a respeito da obrigação imposta por suas funções de separar o papel de presidente de todos os brasileiros (inclusive daqueles que se situam no campo da oposição ao seu governo) da sua condição de militante de um partido político. Não se trata de negar a ele o direito, como cidadão, de participar e de defender uma candidatura, mas de ter em conta que como primeiro mandatário tem o dever de preservar não só a liturgia do seu cargo, mas arbitrar democraticamente conflitos típicos da competição eleitoral que a campanha tende a exacerbar. Mas, ao invés de agir como um dos responsáveis pela normalidade das eleições, Lula tem tomado partido unilateralmente em todos os conflitos surgidos recentemente.
A preocupação com isso é mera formalidade da "democracia burguesa", como diriam muitos de seus companheiros, ou algo a ser levado em conta? Ajuda a responder isso a observação do tom assumido pela campanha nos últimos dias. No auge da disputa envolvendo as denúncias a respeito da quebra do sigilo fiscal de pessoas ligadas ao candidato José Serra, agravadas pela revelação de que práticas de tráfico de influência podem estar ligadas a pessoas da família da ex-ministra-chefe da Casa Civil, Lula radicalizou o discurso e defendeu a extirpação de parte da oposição do cenário político; referindo-se aos Democratas, endossou Jorge Bornhausen (que anos atrás preconizara o fim da "raça do PT"), ou seja, contra a Constituição, discriminou e estimulou o arbítrio contra opositores. Mas não conseguiu manter a ministra Erenice Guerra em seu posto, revelando uma vulnerabilidade.
A resposta ao presidente foi contundente: FHC disse que Lula age mais como chefe de facção do que como chefe de Estado, e Rodrigo Maia, presidente do DEM, comparou-o a Hitler. Ressalvados os exageros verbais próprios da disputa eleitoral, os fatos apontam para certa deterioração preocupante do diálogo político. Democracia envolve conflito, mas supõe cooperação, exige respeito entre os contendores e a sua capacidade de entendimento quando estiverem em jogo interesses públicos; o contexto da campanha não justifica, portanto, que as pontes de diálogo sejam "queimadas".
Na raiz disso está o relativo desequilíbrio imposto à disputa pelo governo. O regime democrático se distingue de suas alternativas não apenas porque se baseia em eleições, mas porque assegura às diferentes forças políticas o seu direito de contestar quem está no poder e de competir por ele em condições de igualdade. Igualdade absoluta quase nunca existe, mas leis, regras e normas do processo eleitoral existem para maximizá-la. Se forem desqualificadas - ou se os adversários forem vistos como "inimigos" a ser eliminados - isso não afeta apenas a campanha, mas sinaliza um claro descompromisso com a manutenção e o aprofundamento da democracia, que pressupõe liberdade e igualdade.
Democracia envolve conflito, mas supõe cooperação, exige respeito entre contendores e capacidade de entendimento quando estiverem em jogo interesses públicos
As eleições de 2010 estão trazendo à tona sinais preocupantes. Por um lado, a campanha eleitoral mantém um tom monocórdio, com os principais candidatos repetindo quase à exaustão os mesmos argumentos sem despertar verdadeiramente o entusiasmo dos eleitores para os desafios que a sociedade brasileira enfrentará nos próximos anos. Por outro, a competição pelo poder perdeu muito do seu vigor, em grande parte, por causa da exagerada antecipação da campanha que o presidente da República protagonizou, com o uso indevido (e, em alguns casos, ilegal) de recursos simbólicos que a sua dupla função de chefe do governo e de chefe do Estado lhe atribui.
Há mais de dois anos Lula age com menosprezo, e de modo abusivo, a respeito da obrigação imposta por suas funções de separar o papel de presidente de todos os brasileiros (inclusive daqueles que se situam no campo da oposição ao seu governo) da sua condição de militante de um partido político. Não se trata de negar a ele o direito, como cidadão, de participar e de defender uma candidatura, mas de ter em conta que como primeiro mandatário tem o dever de preservar não só a liturgia do seu cargo, mas arbitrar democraticamente conflitos típicos da competição eleitoral que a campanha tende a exacerbar. Mas, ao invés de agir como um dos responsáveis pela normalidade das eleições, Lula tem tomado partido unilateralmente em todos os conflitos surgidos recentemente.
A preocupação com isso é mera formalidade da "democracia burguesa", como diriam muitos de seus companheiros, ou algo a ser levado em conta? Ajuda a responder isso a observação do tom assumido pela campanha nos últimos dias. No auge da disputa envolvendo as denúncias a respeito da quebra do sigilo fiscal de pessoas ligadas ao candidato José Serra, agravadas pela revelação de que práticas de tráfico de influência podem estar ligadas a pessoas da família da ex-ministra-chefe da Casa Civil, Lula radicalizou o discurso e defendeu a extirpação de parte da oposição do cenário político; referindo-se aos Democratas, endossou Jorge Bornhausen (que anos atrás preconizara o fim da "raça do PT"), ou seja, contra a Constituição, discriminou e estimulou o arbítrio contra opositores. Mas não conseguiu manter a ministra Erenice Guerra em seu posto, revelando uma vulnerabilidade.
A resposta ao presidente foi contundente: FHC disse que Lula age mais como chefe de facção do que como chefe de Estado, e Rodrigo Maia, presidente do DEM, comparou-o a Hitler. Ressalvados os exageros verbais próprios da disputa eleitoral, os fatos apontam para certa deterioração preocupante do diálogo político. Democracia envolve conflito, mas supõe cooperação, exige respeito entre os contendores e a sua capacidade de entendimento quando estiverem em jogo interesses públicos; o contexto da campanha não justifica, portanto, que as pontes de diálogo sejam "queimadas".
Na raiz disso está o relativo desequilíbrio imposto à disputa pelo governo. O regime democrático se distingue de suas alternativas não apenas porque se baseia em eleições, mas porque assegura às diferentes forças políticas o seu direito de contestar quem está no poder e de competir por ele em condições de igualdade. Igualdade absoluta quase nunca existe, mas leis, regras e normas do processo eleitoral existem para maximizá-la. Se forem desqualificadas - ou se os adversários forem vistos como "inimigos" a ser eliminados - isso não afeta apenas a campanha, mas sinaliza um claro descompromisso com a manutenção e o aprofundamento da democracia, que pressupõe liberdade e igualdade.
José Álvaro Moisés é professor titular de Ciência Política da USP e autor, entre outros, do livro Democracia e confiança - por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas - (EDUSP, 2010).
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