Mesa-redonda debate as manifestações que ocupam as ruas do país
Longa jornada junho adentro
Dois meses após inicio das grandes manifestações, debate promovido pelo Valor discute impacto na sociedade brasileira.
Por Maria Cristina Fernandes, Viana de Oliveira, Robinson Borges e Bruno Yutaka Saito | De São Paulo
Dois meses depois que uma série de pequenas passeatas pela revogação do aumento das tarifas do transporte público em São Paulo e outras cidades se transformou em onda gigantesca de manifestações em todo o país, ainda é difícil imaginar como vai ser o impacto na política no Brasil daqui por diante. Mas um desejo irrefreável de maior participação na democracia e ampliação das possibilidades de comunicação emerge das análises expressas em mesa-redonda promovida pelo Valor entre os professores de ciência política José Álvaro Moisés (Universidade de São Paulo) e Jairo Nicolau (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o professor de comunicação e jornalista Eugênio Bucci (USP) e Bruno Torturra, cofundador do coletivo Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação).
As variáveis ainda em jogo são inúmeras: a atuação da polícia, estopim que deu início à expansão dos protestos, diante da atuação violenta de grupos (como Black Bloc) que atacam símbolos do capitalismo; as novas formas de mídia, diante da imprensa dita tradicional, num embate de formas de atuação; a resposta dos partidos instituídos, diante de uma massa de cidadãos que começa a exigir um papel na decisão política. E a grande dúvida que ainda paira: o que ocorrerá em 2014, ano de Copa do Mundo e processo eleitoral?
Leia a seguir os principais trechos do debate, que ocorreu na tarde de sexta-feira, ao longo de 2h40, na sede do Valor, em São Paulo.
Valor: Em que medidas as manifestações mudam a maneira de fazer política no Brasil?
Eugênio Bucci: Eu queria dar uma ideia ao Zuenir Ventura: que escreva o livro: "Junho, o Mês que Não Acabou". Todo mundo fala das manifestações de junho, mas já é agosto e não acabaram.
Bruno Torturra: Estamos nos apressando em tentar tirar um saldo, mas a história mal começou. E também não começou em junho. O Brasil vem acumulando pequenas manifestações há alguns anos. Há uma tendência de ocupar ruas e tentar criar movimentos horizontalizados. Isso explodiu em junho. É inevitável que o jeito de fazer política seja transformado, mas não me arrisco a dizer como.
Jairo Nicolau: Será que as manifestações não têm um componente que as diferencia do que veio depois? Minha impressão sobre junho está ligada ao volume de pessoas, sobretudo jovens, que não tinham vínculos com a política e foram para a rua. As manifestações podem continuar, podem acabar em outubro, ou não vão acabar nunca. Mas junho teve algo diferente, que não percebo nas manifestações que continuam, mesmo no Rio. Percebo uma diferença no perfil de quem se manifesta e o tipo de ação política das manifestações agora.
José Álvaro Moisés: Esses acontecimentos trouxeram uma variável que estava fora do debate: a cultura política. Os movimentos foram resultado da democracia e ao mesmo tempo reivindicação de mais democracia. Muitos participantes são jovens que nasceram na nova democracia, mas têm um mal-estar com a democracia; não com o regime, mas com o funcionamento das instituições. No desenvolvimento da democracia, escolhas institucionais foram feitas no Brasil sob a égide de concepções muito tradicionais. O modelo de representação vem dos anos 30. Da maneira como vem funcionando, levou ao esvaziamento dos partidos e do parlamento. A percepção disso pelos jovens está levando a uma forma nova de participar.
Nicolau: O movimento não é anticapitalista. Na agenda que apareceu, o que havia de mais antissistêmico era o movimento contra a mídia. Até pelos novos sistemas de comunicação, em que é possível furar a mídia. Cadê a Mídia Ninja dos partidos? A agenda que identifiquei nos cartazes é típica dos partidos social-democratas da década de 70. As pessoas querem justiça social, serviços públicos de qualidade, educação, saúde. Talvez o que furasse essa imagem fosse o tema dos direitos individuais. Mas não tem crítica à democracia, ao capitalismo, não tem frases contra a exploração.
Valor: Como os protestos se refletirão na política tradicional, por exemplo nas eleições de 2014?
Nicolau: Como as forças emergentes vão se comportar eleitoralmente é um enigma. Essa vitalidade não tem passagem na velha ordem. Como essas pessoas que entenderam a relação entre ir para a rua e a passagem de ônibus cair vão se comportar? O Congresso, o presidencialismo de coalizão, tudo vai ser avaliado. Podemos supor que esses jovens que estão pensando em política pela primeira vez não se comportarão homogeneamente e isso não vai ter efeito para ninguém. Mas será surpresa se a eleição do ano que vem gerar um Congresso parecido com o atual.
Torturra: Quem tomou posição mais clara tende a crescer, como a Rede, de Marina Silva. Porque ela se chama rede, vem de uma lógica horizontal, tem um discurso oriundo do ativismo, uma crítica ao funcionamento dos partidos, e está fazendo algo que tende a ganhar espaço: candidaturas autônomas.
Moisés: Mecanismos tradicionais de mediação entre interesses da sociedade e o núcleo decisório do sistema político estão entupidos. Nas minhas pesquisas de confiança nas instituições, desde meados dos anos 80 já tinha insatisfação com partidos e o Congresso, mas não nesse nível. As últimas pesquisas mostram que a desconfiança nos partidos ultrapassa 80%, e no Congresso bate em 79%. A pergunta sobre democracia chama atenção. 30% das pessoas acham que ela pode funcionar sem partidos. É um terço da cidadania. Há 30% também que acham que ela pode funcionar sem o Congresso. A novidade de junho é que pela primeira vez se fez na rua uma conexão entre o mau funcionamento das instituições e o mau funcionamento dos serviços públicos.
Nicolau: Um tema fundamental é a relação dos movimentos com a democracia representativa tradicional. Não é uma relação fácil. Como interpretar a invasão da Câmara Municipal do Rio? Nunca vi cenas assim. Gente pisoteando a mesa. Primeiro, tentaram entrar no Congresso em Brasília e na Câmara do Rio, que foi Câmara Federal até 1960. As duas casas que expressam historicamente o Legislativo do Brasil. Essa onda tem um componente decisivo, que estava adormecido na democracia brasileira: a participação. Mas me preocupa a relação ambígua de alguns segmentos com a democracia representativa. Ano que vem os movimentos vão ter de se posicionar em relação às eleições. Ficarei preocupado se começar uma onda a favor do voto nulo, por exemplo.
Moisés: Há uma imagem de que no Brasil o presidencialismo de coalizão funciona muito bem e garante a governabilidade. Esses acontecimentos levantaram uma dúvida sobre isso. A opinião pública está implicitamente rejeitando um sistema que faz alianças para todo lado.
Valor: Se as manifestações são em parte um rechaço ao presidencialismo de coalizão, como entender o que ocorreu na Espanha, nos EUA, na Turquia?
Moisés: Há um reflexo no tema da mediação entre instituições e sociedade. Um problema na qualidade da democracia. A diferença da democracia para outros regimes é o poder que ela dá aos cidadãos para participar e controlar. Não é que o presidencialismo de coalizão provocou a insatisfação, mas tem conexão com o sentimento de não se sentir representado.
Bucci: Há um denominador comum nesses países. O contingente que se manifestou vem do mundo da vida, não de setores organizados. São atores novos, que não passaram pela escola de teatro político. Há um descompasso entre o ritmo da vida, que trafega na velocidade da luz, e a linguagem da representação. A lógica pela qual construímos a institucionalização da vida política, a confecção de leis, impostos, licitação, ficou lenta demais. A política precisa se modernizar. O apelo é mundial.
Torturra: É preciso falar da fragilidade da sociedade em rede. Ela é ágil para ir à rua, mas sua atenção dura pouco. Ela é tão acelerada que sempre precisa pedir a próxima pauta. O plebiscito caiu, agora é o Amarildo [de Souza, pedreiro desaparecido no Rio depois de convocado para depor na UPP], daqui a duas semanas vai ser o quê? O metrô de São Paulo? Se a sociedade não se responsabilizar, o Estado não precisa ser reformado: é só esperar que a coisa esfrie. Isso reforça o pior sentimento: o cinismo. Dizer que não adianta, o mundo é assim.
Valor: Quando as manifestações começam com Movimento Passe Livre e terminam com Black Bloc, não há risco de desencadear uma reação conservadora?
Bucci: A dicotomia entre vândalos e pacíficos esconde nuanças. Grupos que explodem em violência contam com alguma cobertura. Quando não contam, há uma ruptura, a passeata esvazia. A Polícia Militar em São Paulo deu uma grande contribuição ao crescimento do movimento quando disparou contra todo mundo, fez aquela baixaria, o vandalismo fardado. Naquele dia, editoriais de dois jornais tinham clamado por rigor policial. Ela foi com toda a confiança, fez o que fez, o país não engoliu.
Torturra: A presença do Black Bloc é reação ao sentimento de que o movimento estava sendo tomado por fascistas. Mas isso é uma alucinação. O Black Bloc foi para a rua com o seguinte discurso: "Chega de ver a sede da Fiesp fazendo projeção em verde e amarelo. Chega de classe média alienada querendo determinar o que o protesto é".
Bucci: Um aspecto pouco trabalhado é a linguagem. Foi adotada uma linguagem que tem tudo a ver com manifestações que pipocaram em outros lugares. É algo próprio de um movimento que emerge não da esfera pública organizada, mas do mundo da vida. O mundo da vida é o território onde temos as conversas mais íntimas. Esse mundo não tinha acesso à visibilidade política e passou a ter. A pessoa sai diretamente da mesa de bar, sem passar por nenhuma assembleia, nenhuma convocação, e vai diretamente para a cena pública. Isso é novo.
Moisés: É outra maneira de perceber a política, mas tem enraizamento na experiência democrática brasileira. Por um lado, a democracia abriu possibilidades, por outro tem déficits sérios no funcionamento das instituições que deveriam dar espaço para a realização das escolhas das pessoas.
Bucci: Muita gente fala em despolitização. Não, há politização, só que com signos diferentes. O que é atacado com violência são signos do poder, como os bancos, palácios do poder, concessionárias, vans de empresas de mídia. Essas são vistas, numa face, como representantes do poder. Em outra face, são aqueles que podem mostrar para o mundo o que acontece aqui. Criou-se um vínculo fraterno quando jornalistas foram vítimas da violência policial. Mas os carros da mídia representam o poder. As coisas são signos e as passeatas sabem ler esses signos. Nas passeatas antiglobalização, há alguns anos, atacavam lanchonetes McDonald"s. Não era porque as pessoas detestassem o sanduíche, mas porque era o símbolo de um poder que eles combatiam.
Torturra: O Black Bloc não é um movimento. É uma estética, um código simples de reproduzir. Quando vão para a rua a sociedade identifica: o Black Bloc chegou. É um comportamento emergente. A ausência de liderança, que virou clichê, é ausência de mediação. A ação direta das pessoas, seja alguém de classe média que pintou a cara de verde e amarelo, seja o garoto de periferia que vai quebrar um banco.
Bucci: Algo que me preocupou foi a omissão da PM, em alguns atos quando nem havia mais manifestação, e houve saques que eram pura bandidagem. A polícia não agia, como se esperasse a temperatura subir, para que viesse um clamor por repressão. Esse clamor não veio. Tenho falado no vandalismo fardado, mas de modo geral um capítulo muito negativo foi o papel da PM.
Valor: Depois de tanto clamor por repressão, o que a ausência desse clamor pode significar?
Torturra: É muito significativa. A violência foi dirigida aos bancos. Se fosse uma quebradeira na avenida Paulista inteira, arrebentando bares e comércio, batendo em pessoas, o clamor por repressão viria. Grande parte da sociedade pacata se sente representada. Não está disposta a fazer como o Black Bloc, mas se diz intimamente: "Pode continuar, não quero que a Rota quebre esses meninos".
Moisés: O tema da Polícia Militar é importante. Em uma sociedade complexa, tem de ter polícia, alguém tem de garantir a lei. Mas na democracia, a polícia tem de ser democratizada: o procedimento, a ordem, o mecanismo. A autoridade civil tem de controlar a força militar. Senão, a democracia tem baixa qualidade. Em São Paulo, vi o governo jogar com isso, ora dar ordem de repressão muito forte, depois recuar, depois retomar. Por um lado, é o jogo político. Por outro, é descontrole democrático.
Torturra: Há uma cultura profunda na polícia e na sociedade de que a ordem é um valor em si, mais importante que a justiça, por exemplo. Grande parte da sociedade que está na rua acha o oposto. Que a ordem emana de um mundo um pouco mais justo.
Bucci: A desordem é uma ordem que não nos interessa. No Brasil, as contradições do país, que conduziram à situação que desencadeou nas manifestações de junho, tornaram rotineira uma desordem aviltante na vida de grandes parcelas da população. Não conseguir marcar uma cirurgia, não conseguir pegar ônibus, ser maltratado por policiais, ser desprezado pelo cinismo do poder público. Isso é uma desordem que o hábito ensinou a chamar de ordem. É contra isso que as manifestações se levantam. A própria corrupção também é uma desordem.
Valor: A desordem travestida em ordem remete a um país de desigualdades. A mudança recente da pirâmide social, que não foi acompanhada por melhores serviços públicos, amplificou a rejeição a esse estado de coisas?
Moisés: Mexer na estrutura social tem efeitos em várias dimensões. Nas manifestações, conta muito a entrada de jovens com acesso a educação maior que a dos pais. As pessoas querem mais do sistema.
Torturra: O brasileiro se acostumou à vida instável, a se preocupar com o fim do mês. Exigir cidadania era um luxo. Agora as pessoas respiram mais aliviadas. A classe média se sente com poder. Elas se perguntam: "Cadê a cidadania?". Até mesmo um governo de esquerda as tratou como consumidoras, não cidadãs. Por mais que 40 milhões de pessoas tenham subido, e é uma conquista histórica, a ascensão social não veio acompanhada de afluência democrática.
Valor: A opinião pública flutuou nesse período de um jeito bastante curioso. Primeiro clamou por repressão, depois apoiou, depois ficou sem saber o que pensar.
Torturra: Parte da causa da paranoia sobre a direita capturar o movimento é que a opinião pública não é mais estável. Ela está em rede, tem narrativas múltiplas e uma salada ideológica, não só na sociedade, mas na cabeça de quem está na rua. Tem gente que é anticomunista, mas defende a estatização dos bancos, quer pena de morte, quer saúde pública. A opinião publicada, que sempre teve o monopólio sobre o que é a opinião pública, está sendo constrangida. Na fusão de rede com rua, a salada ideológica se manifesta de milhões de maneiras. As placas tectônicas que estão se mexendo estão longe de parar. O ano que vem vai ser ainda mais intenso, com eleições e a Copa.
Nicolau: No início, houve um componente de ineditismo, a ausência de liderança que ajudou esse plasma a ir para a rua. A rua é um lugar de fazer política, claro. Mas é possível fazer política na rua por muito tempo? É possível criar agendas para manter os jovens na rua? No Rio, os jovens estão na rua porque descobriram um tema: "Fora Cabral". No começo, não ter tema foi importante para a vitalidade do movimento, como no lema de 1968: "Que floresçam flores". Esse ciclo dificilmente se recoloca.
Moisés: As pessoas diziam: "Quero participar, ser ouvido". Não é por acaso que tentaram invadir o Congresso, a Assembleia do Rio, a Prefeitura de São Paulo. São símbolos físicos das instituições. As pessoas estão expressando a percepção de que a participação é importante. Elas querem ocupar esse espaço, e podem. Agora, vão fazer um balanço das respostas do Executivo, do Legislativo, dos partidos. Com a Copa e as eleições, tem grande chance de voltarem as manifestações. Não sei se os partidos vão ser capazes de ouvir. Até onde percebo, não vão ouvir nada.
Bucci: A política é indispensável, mas ela precisa renovar seus procedimentos. Precisa ser capaz de escutar. Por exemplo, o papa. Ele andou no meio das pessoas, ficou no congestionamento. A organização mais conservadora do mundo é o Vaticano, mas o papa vem aqui e é mais horizontal que qualquer deputado, mais aberto ao diálogo que qualquer diretor de ministério. Tem mais abertura para o contato com as pessoas e disse uma palavra que o mundo político no Brasil não entende: diálogo. Como manifestação de rua, o papa Francisco foi uma grande lição.
Moisés: Ele fez uma frase absolutamente precisa: é preciso recuperar a dignidade da política, entendida como uma forma de atuação ética e eficaz no ambiente público, mas também uma forma de caridade. Não foi por acaso. Ele foi informado, percebeu o que se passa no país. A coisa mais interessante da visita do papa é que ele se colocou na posição de quem quer ouvir as pessoas. Num contexto em que ninguém ouve ninguém, isso teve um papel simbólico.
Torturra: Não podemos esquecer o lado emocional. Há algo de psicodrama, terapia coletiva, catarse, nas manifestações. Vem de uma certa carência das pessoas, na falta do espírito público que não seja estatal. As pessoas têm desejo de participação pública no mundo todo, na Turquia, nos Estados Unidos, na Espanha. É uma nova psicologia de massas. Há um caráter emocional represado, uma carência pública de sociedades segmentadas em classes de consumidores.
Bucci: Vou mais longe. As pessoas foram para a rua porque estavam insatisfeitas, mas também porque é um barato. E conecta as pessoas. É um sentimento de pertencimento: não pertencer a nada disso que está aí, mas a essas outras pessoas que se manifestam. É uma integração da sociedade que vem diretamente do mundo da vida, numa era transnacional de protestos
Valor: Uma novidade é o jornalismo cidadão. Mas o jornalismo é caro e muitos dizem que mídia tradicional pode se deixar capturar por interesses econômicos. Como fazer jornalismo cidadão sem ser capturado também?
Torturra: O papel da mídia está subestimado, inclusive na percepção de que é um inimigo e alvo. A crise de linguagem é uma crise narrativa. As pessoas não se sentem traduzidas. Além da violência policial, além dos editoriais, um componente decisivo foi a percepção de que estão mentindo para nós. Não estão respeitando nossa inteligência, nossa cidadania. A mídia independente, da qual sou representante, é um fenômeno de cidadãos conectados. O cidadão que filma e compartilha representa a crise de mediação. Os partidos estão em crise, o Congresso, a mídia, as igrejas. Antes eles tinham o monopólio da mediação. A capacidade de se comunicar diretamente e coletivamente significa que o que era uma conversa de bar, e podia facilmente tornar-se a cultura cínica de que é assim mesmo, mudou.
Bucci: É um discurso que se faz através e para além das massas. Assim como o uso da bandeira nacional, embora seja um símbolo um tanto conservador. As pessoas abraçam a bandeira para dizer o quê? Que o país somos nós, não são vocês. A torcida, na Copa das Confederações, cantava o hino nacional além do protocolo. Vou fazer a confissão de uma coisa brega: eu achava aquilo lindo, eu ficava até mesmo bastante emocionado. Eram pessoas tomando posse do símbolo da nação. Cantamos isso até aonde quisermos. Não são vocês do protocolo que vão dizer quando começa e termina.
Moisés: A linguagem serve para expressar conteúdos. Quando vamos examinar os conteúdos, tem uma reivindicação forte de ser incluído, participar e influir. É uma reivindicação democrática. Não vi ninguém com cartaz contra a democracia. O mundo da vida está presente. A maneira como as pessoas percebem sua vida e como isso tem ligação com a esfera pública. É a constatação de um mal-estar com a democracia existente, não com a democracia ideal. É a reivindicação de mais democracia. Não é pouca coisa, no Brasil de tanta tradição conservadora, tutelar, patrimonialista.
Torturra: O jornalismo cidadão não vai substituir o jornalismo comercial. Ele vem provocá-lo, arejá-lo, causar uma saudável crise de consciência. É uma operação cara, claro, mas precisa ser tão cara? A TV precisa ter o tamanho que tem hoje? Será que não se pode diminuir o custo com equipamentos e tecnologia, para difundir a informação de outra forma? Será preciso gerar tanto lucro para tão pouca gente e pagar tão mal os jornalistas? Será que não podemos criar estruturas um pouco mais democráticas? Ao mesmo tempo, o leitor, o espectador, que já se sente mais com poder, vai ter que se reformular. Vai ter que entender que com esse novo poder de confrontar as narrativas vem a responsabilidade de não ser só um replicador de informação. Precisa checar também. E precisa decidir se está disposto a financiar formas colaborativas de mídia, já que rejeita, por exemplo, a notícia de um jornal que tem anúncios e talvez seja manipulado por causa disso. Mesmo assim, não defendo o fim do modelo vigente. Seria um país pior se os jornais fechassem.
Bucci: O país seria melhor se a imprensa fosse melhor e seria pior se a imprensa fechasse. A imprensa é uma instituição e não se confunde com o conjunto dos meios. Mídia Ninja é imprensa, Valor Econômico é imprensa. A distinção é crucial para entender por que os manifestantes abraçavam jornalistas e agrediam viaturas de imprensa. Há problemas que precisam ser enfrentados. Os jornalistas se sentem descartáveis. Há inclinações partidárias nas redações. Mas quem faz a imprensa são bons jornalistas profissionais. Sem redações independentes, que pagam os custos da reportagem, não temos imprensa livre.
Valor: Um símbolo surgido das manifestações mais recentes é o pedreiro Amarildo. O que se pode esperar do confronto com a arbitrariedade da polícia?
Nicolau: Fiquei bastante surpreso com a força desse movimento. Teve outro episódio em que a polícia invadiu o complexo da Maré, no Rio, e morreram dez pessoas. Isso não foi tão politizado. O que motiva as manifestações no Rio de Janeiro é a política do governador. O caso Amarildo envolve a polícia e a UPP, que é a melhor coisa que o governador pode oferecer com resultados palpáveis para a vida da cidade. Por que o Amarildo? Porque é a polícia atuando à maneira tradicional numa UPP.
Torturra: Há algo no movimento que vem da rede e se funde com a rua. Há coisas que sobem e, por algum motivo, ecoam. São os memes, ninguém sabe por que pegou. Por que a Maré não pegou e o Amarildo pegou? Talvez o nome Amarildo soe melhor, ou veio no dia certo. Alguém fez uma frase, "Onde está Amarildo", quase um slogan. Tem uma coisa publicitária da nossa geração. Quem sabe manipular isso se dá muito bem. A Rocinha se sentiu com poder quando viu manifestantes de classe média pedindo satisfação sobre um morador da favela. Houve uma articulação em rede, muito contato no Facebook. Essas pontes estão se estabelecendo através de signos e códigos.
Valor: A política tradicional tentou responder, primeiramente, com a proposta de reforma política, mas as manifestações não parecem muito animadas com essa perspectiva.
Nicolau: A reforma política não mobiliza as redes e as pessoas porque estamos falando em reformar a velha ordem. Isso não interessa ao jovem. É uma questão sistêmica e inclui o funcionamento do presidencialismo de coalizão, mas essa não é a questão das pessoas. O que apequenou a política nos últimos tempos foram os desmandos. O governo do Rio não caiu em desgraça com a população por causa das políticas públicas. Foi o abuso, o tratamento que deu aos bombeiros, a proximidade com os empresários. A política pública foi testada nas urnas e teve 66% dos votos há dois anos e meio.
Moisés: Quando as pessoas querem pensar em soluções, parte do bloqueio é porque as instituições não oferecem nada. Hoje, o movimento talvez não queira colocar esse tema, mas em algum momento isso virá à tona. Vamos ter de mexer nisso. É uma implicação do movimento. Para criar um quadro com a mínima possibilidade de participação e intervenção das pessoas, é inevitável voltar ao tema: como é a representação?
Bucci: Uma coisa que deixa desconcertados os donos do poder é que os manifestantes não são candidatos a nada. Não querem substituir o poder, eleger deputado, fazer um senador. As pessoas são candidatas a cidadãs. O movimento é candidato a ser tratado com respeito, ele vem enquadrar o poder. O político reage propondo chamar essas pessoas e fazer aliança. Mas eles não querem. Isso desprograma o automatismo do vício político.
Moisés: O tema da reforma política é importante. O sistema eleitoral, financiamento de campanha e o excesso de poder do Executivo sobre o Legislativo, que diminui a importância dos parlamentares e dos partidos. Com a importância diminuída, o político entra em qualquer coisa. A reforma política pode ser a via para dar voz ao mundo da vida. Mas ao fazer isso, ela toca nas instituições. Vamos fazer democracia sem nenhuma instituição? Não somos uma sociedade de 5 mil atenienses na Antiguidade, somos 200 milhões.
Nicolau: Os partidos, instituições que processam demandas e ligam os cidadãos ao governo, envelheceram. Quando ouço meus estudantes falando do sistema representativo e da elite brasileira, parece o tempo da Revolução de 1930. Eles lidam com os signos da velha política como algo que não diz nada da vida. Como compatibilizar uma juventude que opera numa velocidade incrível, com organizações da velha ordem democrática, que operam em outra? Como compatibilizar uma nova ordem de comunicação, de sociabilidade, com instituições criadas com parlamentos de origem medieval e partidos com origem no seculo XIX? No Brasil, esse distanciamento apareceu de maneira cabal. Talvez porque o partido mais bem-sucedido na conexão entre sociedade e política, que foi o PT, também envelheceu.
Torturra: Quando entrevistamos pessoas que repudiavam a bandeira do Partido dos Trabalhadores, não era repúdio à política social. Era contra a aliança com Renan Calheiros e Sarney, o apoio de Marco Feliciano. Tem uma juventude que, quando ouviu falar de política, Lula já era presidente e agia de maneira incoerente com a tradição de luta popular. Na cabeça do jovem que está começando a descobrir política, a bandeira do PT representa hipocrisia. Quando veem as bandeiras, gritam: "Oportunistas!". E os petistas, que foram à rua para defender seu histórico, não a presidenta, respondem: "Fascismo!". Mas a maioria das pessoas com bandeira do Brasil defendia valores que o petista de carteirinha defenderia.
Bucci: Quando gente de camisa vermelha foi atacada, tinha, talvez, alguma semente de fascismo. Mas é preciso lembrar que camisa vermelha, hoje, é símbolo do poder, não da contestação. É uma dessas ironias do Brasil, mas a bandeira vermelha virou chapa branca. Quando as pessoas repudiam a camisa vermelha, não repudiam um partido com histórico de lutas, mas o governo.
Torturra: Um erro do movimento é achar que a ausência de liderança é um valor em si. Precisamos de mais liderança, não menos. Não seria alguém para mandar em todo mundo, mas para representar as vozes. Alguém que vai ser bem mais cobrado que as lideranças analógicas. Também não tem ninguém traduzindo isso culturalmente. Os porta-vozes que faltam na política, capazes de traduzir e atualizar o sistema, também faltam na arte. Algumas pessoas captam esse sentimento. Se não é mais o líder político ou o artista, talvez sejam [Julian] Assange, [Edward] Snowden, [Bradley] Manning.
Bucci: São pessoas que defenderam o direito ao segredo da pessoa humana contra a opacidade do Estado. Exigem o dever de transparência do Estado. Isso é uma palavra de ordem atual e democrática. O Estado tem o dever de ser transparente. E nós temos o direito de ter segredos, individualmente.
Professor doutor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, Eugênio Bucci escreveu livros como "Sobre Ética e Imprensa" (Companhia das Letras)
Professor titular do departamento de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), José Álvaro Moisés estuda teoria democrática e comportamento político
Especialista no estudo de partidos políticos e eleições, Jairo Nicolau é
professor de ciência política na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Bruno Torturra, de 34 anos, é cofundador da Mídia Ninja, coletivo de jornalistas que se propõe como alternativa ao "mainstream" ao transmitir protestos pelo Brasil
Fonte: EU & FIM DE SEMANA / Valor Econômico
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