- O Estado de S. Paulo
Nos estertores deste processo eleitoral, amainada a tempestade provocada pela triste morte de Eduardo Campos e pela ascensão de Marina Silva, a disputa retoma a antiga trilha marcada pela oposição entre PT e PSDB. Basta, entretanto, atentar para a violência da campanha e para os ataques disparados pelas redes sociais para perceber que algo de inusitado aconteceu. O que explica a violência que se nota no grito "Fora, PT" e nos ataques inusitados dos petistas? Se os protestos de julho do ano passado não pautam as discussões e as ofensas atuais, eles não reaparecem transfigurados nos reclamos por mudança?
Tudo parece indicar que já terminou o ciclo virtuoso iniciado com o Plano Real, a nova política econômica do governo de Fernando Henrique Cardoso, reorientada pelo governo Lula, que reforçou de modo brilhante a inclusão social. O governo Dilma remendou o que pôde. No entanto, pouco a pouco, abandonou a linha da prudência, interveio no sistema de preços, abandonou a disciplina fiscal, administrou o câmbio, inventou uma contabilidade criativa, e assim por diante. Se estamos beirando a recessão e nos assustando com a perda do controle da inflação, tudo isso é atribuído a uma crise internacional que, entretanto, não afeta com o mesmo furor economias semelhantes à nossa.
Se o desafio é crescer mantendo a inclusão social, não há como evitar o desenho de uma nova estratégia para o desenvolvimento econômico e social. O setor público brasileiro necessita financiar o equivalente a 4% do produto interno bruto (PIB), o que demanda colaboração do capital tanto privado como internacional. Mas tudo o que este governo fez nesse sentido emperrou porque pretende controlar o capital pelo interior, atuar no nervo do processo produtivo por meio da regulação dos lucros e dos preços. Falta-lhe uma compreensão dos modos de produção do capitalismo contemporâneo, profundamente enraizado na invenção tecnológica, na rápida promoção de novos produtos, na economia criativa, na intensa participação no processo de globalização.
Apenas um exemplo dessa visão caolha. Num capitalismo em que o conhecimento se converte em força produtiva, o estatuto jurídico de uma empresa se torna irrelevante diante da capacidade do Estado moderno de regular o fluxo da inovação. Uma empresa estatal pode ser coibida no seu desenvolvimento se lhe faltar espaço para desenvolver novos produtos, se não encontrar no mercado mão de obra altamente qualificada, sobretudo se sua burocracia for enervada pela invasão de quadros políticos inexperientes. Isso se não for assaltada por uma gangue organizada, como é o caso da Petrobrás. Em contrapartida, grandes empresas privadas, como as que hoje operam a telefonia, também podem carunchar se as agências que as regulam participarem dos órgãos de Estado sob o direto controle dos partidos políticos instalados no poder.
Se o objetivo é crescer com inclusão social, fica evidente que esse não foi o foco que marcou esta campanha eleitoral. Ao contrário, o debate girou - deixando de lado as ofensas pessoais - em torno dos processos de distribuição da riqueza nacional, como se o crescimento dela fosse uma questão menor, que viria de per si quando a crise internacional arrefecesse. Ora, esta crise somente pode ser superada mediante uma extraordinária transformação científico-tecnológica de nossos processos produtivos, a exemplo do que hoje começa a ser feito nos Estados Unidos.
Enquanto isso, nós, recaindo na velha oposição entre o PT e o PSDB, ignorando a história e as vicissitudes de cada um desses governos, assistimos à repetição da luta entre o tostão e o milhão, por certo modernizada e repintada pelos golpes mais sujos.
Convenhamos, a campanha que ora termina foi uma triste farsa cobrindo com o pano de xingamentos as opções que agora somos obrigados a fazer. O PT fantasiou-se como o partido dos deserdados. Se de fato trouxe para o mercado de trabalho e de consumo milhões de brasileiros, a muitos não indica a porta da autossuficiência. Não ousa mencionar seus compromissos com o agronegócio e com as empreiteiras internacionalizadas. A antiga esquerda reconhecia as classes pelo papel que desempenhavam nos processos produtivos. A "moderna" as ordena pelos níveis de renda, quando não encobre o caráter dialético da noção chamando de classe um tal de subproletariado, exatamente no momento em que a unidade do próprio proletariado entrou em crise. E assim uma intelligentzia muito inteligente mostra sua cara compungida, declarando seu voto pelo fim da pobreza, deixando de discutir que tipo de desenvolvimento nos cabe assumir agora. Nossas apostas políticas devem depender da maneira como entendemos o capitalismo contemporâneo, e não de paixões militantes.
Ora, PT e PSDB têm os mais variados compromissos de classe. Não podemos esquecer que a luta de classes que perpassa a sociedade brasileira se exerce entre grupos que ainda não se fixaram, variando sua composição, visto que nossa produção material ainda precisa conquistar um novo mundo, não tendo nem tempo nem oportunidade para abolir completamente a velha ordem das coisas. Se nosso sistema político apazigua a ebulição entre grupos, criando uma falsa imagem de futuro sorridente, a atual crise do sistema capitalista nos coloca diante de caminhos que precisamos escolher. Antes de delinear o tipo de sociedade de consumo que vamos ser, é preciso estruturar nosso modo de produção tendo em vista a inclusão e a diminuição da exploração do trabalho.
A oposição nos últimos tempos teve um sopro de vida embalado pelas esperanças da terceira via esboçada pela candidatura Eduardo Campos/Marina Silva. Diante, porém, do tanque de guerra petista, apenas esboça uma liderança que pode mostrar-se capaz de renovar a política brasileira. Entre o velho, que atira para todos os lados, e o novo que apenas desponta, a minha aposta não pode hesitar.
*José Arthur Giannotti é professor de Filosofia da USP e pesquisador do Cebrap
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