• Impeachment pode ser inconsistente, mas não improvável
- Valor Econômico
O impeachment que ora se inicia, ainda que nasça no contexto econômico mais sombrio das últimas décadas e tenha como alvo uma diletante na atividade política, se assenta em bases frágeis.
O contraste com o processo de 1992 é evidente. Na ocasião, o afastamento do então presidente Fernando Collor foi um verdadeiro "happening", em que se congraçaram governadores, partidos políticos de todos os espectros, movimentos sociais, sindicatos, igrejas e estudantes.
A desonestidade pessoal de Collor era tida como um dado incontroverso. Seus defensores no Congresso eram parte de uma esquadra brancaleônica de bufões do baixo clero.
A principal iniciativa de Collor foi tentar barrar o impeachment no varejo, barganhando individualmente com deputados por meio de um trio formado pelo articulador político do governo, o presidente do Banco do Brasil e o da Caixa. A maré os levou.
Naquela que foi a última safra de governadores influentes do país, o baiano Antonio Carlos Magalhães batalhou como pôde a favor do presidente, em troca de receber o comando da máquina administrativa, mas em algum momento percebeu que era uma batalha perdida. Dos magros 38 votos contrários ao impeachment, somente oito eram de baianos.
Desta vez, Dilma tem a favor de si a debilidade da peça acusatória feita pelos juristas Miguel Reale Jr., Hélio Bicudo e Janaina Paschoal. É discutível a tese de que a presidente descumpriu a lei de responsabilidade fiscal ao assinar decretos de gastos orçamentários a descoberto em 2015, sem autorização legislativa, e, por isso, mereceria perder o mandato.
A argumentação foi classificada como "ridícula" por um sobrevivente de uma administração falida, o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega, horas antes de Eduardo Cunha iniciar o processo.
"Fico perplexo quando vejo as pessoas falarem que Dilma tem que sair com base em um gasto de um exercício que não terminou. Você não pode banalizar o impeachment", afirmou o ex-ministro, insuspeito de simpatia com o governo, em um evento empresarial.
Outro trunfo para Dilma é o vício de origem da iniciativa, marcada pelo estigma da infâmia. Em resumo, o impeachment começou como mais uma manobra protelatória de Eduardo Cunha para barrar sua cassação. Um pedido de impeachment sem mobilização popular, com bases formais duvidosas e motivação espúria nem por isso torna-se improvável.
A perda de consistência política da presidência petista é um dado real, a partir do momento que ficou claro não existir um acordo de procedimentos entre as forças políticas para manter o calendário institucional e promover a guinada de rumo somente em 2018.
A inconsistência do pedido atual de impeachment o torna mais perigoso, independente de seu desfecho. Sua aprovação levaria Temer à Presidência com o propósito de realizar um programa econômico ousado, tendo sua legitimidade em discussão.
Caso o governo consiga barrar o processo, na justiça ou no plenário, terá vencido apenas o primeiro 'round'. A ofensiva pelo impeachment pode voltar em 2016, em uma Câmara já não presidida por Eduardo Cunha, sobretudo na hipótese de se tornar evidente o caráter minoritário da administração. Com 180 votos na Câmara, por exemplo, a presidente terá escapado da degola desta vez. Mas conseguiria governar com mais de 300 votos entre os deputados contra sua permanência no Planalto?
O exercício do impeachment como prenúncio de ruptura foi experimentado no Brasil. Em 1954, a UDN impulsionou um pedido para afastar Getúlio Vargas, em razão dos rumores de que o então presidente teria feito um pacto secreto com o argentino Juan Perón. O deputado Afonso Arinos, um dos caciques da oposição, não entendia a insistência na tese. Estava claro para ele que a matéria não passaria no Congresso.
Ao conversar com o brigadeiro Eduardo Gomes, derrotado por Getúlio na eleição presidencial, Arinos ouviu que o propósito do pedido não era instalar o impeachment, mas o de levar a discussão sobre a continuidade do mandato para fora do ambiente institucional. "Aí entendi o jogo", disse Arinos, de acordo com o que relata o jornalista Lira Neto na biografia do ex-presidente.
A conexão com o momento atual não está no desfecho da crise de 1954, mas em que uma derrota do impeachment não zeraria o jogo. Getúlio vivia uma falência política. Há sessenta anos, era necessário construir a maioria não apenas na Câmara e no Senado, mas nos quartéis. A equação hoje obviamente é outra, mas Dilma começou a perder sua sustentabilidade em algum momento de 2014, antes mesmo de tomar posse.
Descartando-se o impeachment como solução para se sair de um impasse político, econômico e moral, no mais otimista dos cenários reviveremos o fim dos anos 80. Coube a Mailson organizar economicamente um governo sem qualquer horizonte, marcado no final pelo derretimento da moeda.
O ex-ministro relembrou no evento o que inspirou a sua filosofia de propor a política do "feijão com arroz". "Era a certeza de que não havia como mudar rumo. O 'feijão com arroz' é ir levando, tocar o barco no meio da tempestade e do nevoeiro a algum porto, e esperar por lá que ele seja reparado", disse.
A disputa política impede a implantação de reformas econômicas substantivas de qualquer viés antes de 2018. O Brasil torna-se assim uma aposta de risco para o futuro, para o qual não há ponte: a travessia terá que ser feita a nado.
Nada acontecendo, não se estabiliza a relação entre dívida e PIB, e nem o déficit fiscal. O câmbio traciona a inflação e a política de juros altos se consolida. Em um quadro assim, a única previsão que se pode fazer sobre a próxima eleição presidencial é que o debate eleitoral dificilmente poderá ser outro que não a crise econômica.
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