• O Brasil precisa ter um papel de peso na transição de Cuba rumo ao regime democrático
• A esquerda deve refletir se vale a pena imolar as liberdades em nome de uma pretensa justiça social
Anunciada pelo irmão Raúl na TV estatal, a morte de Fidel Castro, aos 90 anos, ocorrida na madrugada de ontem, é o ponto final na biografia de um dos mais longevos ditadores, e que já havia entrado para a História faz tempo.
Afinal, ficou no poder por mais de 50 anos, transformando Cuba num parque temático a céu aberto de um tipo de regime anacrônico que desaparecera do mapa no final do século passado com o fim da União Soviética, a reunificação da Alemanha, a debacle dos regimes comunistas na Europa Oriental e a adoção de uma espécie de socialismo de mercado na China.
O tempo que passou para todos parecia não passar para Fidel. Verdade que sua capacidade de manter o regime comunista intacto foi ajudada por outro fator: o embargo econômico aplicado pelos Estados Unidos. O isolamento deu ao ditador a oportunidade histórica de aparecer aos olhos da esquerda como um titã capaz de resistir à superpotência, conservando-o — ao lado do lendário companheiro Ernesto Che Guevara — como um ícone mundial. Altares de radicais no Brasil também os veneram.
Embora de forma tardia, os Estados Unidos, por meio de Obama, deram o passo certo da reaproximação com Havana, cidade a que o presidente visitou em março, sendo recepcionado por Raúl, a quem Fidel passou parte do poder, em 2006, devido a problemas de saúde. Mas ficou como eminência parda. A alma autoritária dos ditadores é mais forte que tudo. Roga-se que o novo presidente americano, Donald Trump, não ajude os comunistas reacionários que ainda resistem em Cuba, voltando atrás no que fez Obama. Ao contrário, siga em frente e estimule o novo Congresso, sob controle republicano, a suspender o embargo comercial, o tiro de misericórdia neste stalinismo tropical.
Como ponta de lança da União Soviética no quintal dos Estados Unidos, o regime castrista recebeu bastante do ‘‘ouro de Moscou’’ para conseguir avanços em setores como assistência social, medicina e educação. Também a exemplo dos países comunistas europeus, o esporte teve forte apoio de Havana e se destacou no cenário latinoamericano, como vitrine de uma sociedade supostamente superior.
Porém, como era característico nos regimes comunistas, o sistema cubano pode ter acabado com a miséria, mas apenas distribuiu por igual a pobreza, preservando, é claro, uma casta de burocratas e militares bem de vida.
O fim da URSS selou o declínio da ‘‘Revolução Cubana’’, à frente de um país que quase só tinha como produtos de exportação o açúcar — cuja importação era regiamente paga na época soviética —, os famosos charutos e o rum. A ascensão do caudilho Hugo Chávez garantiu a sobrevida do castrismo. A Venezuela passou a fornecer petróleo a preços subsidiados, pagos por Havana com a cessão de médicos, dentistas, assistentes sociais e outros profissionais sem trabalho em Cuba, para atuarem nas missões de cunho assistencialista de Chávez. Também vieram para o Brasil lulopetista. Mas o regime chavista, já sem o seu líder, mergulhou em parafuso, como previsto.
Filho de família abastada, Fidel adotou o marxismo-leninismo na juventude e, aos 32 anos, comandou a vitoriosa revolução que apeou do poder, em 1959, Fulgencio Batista, presidente eleito de 1940 a 1944 e ditador, apoiado pelos EUA, de 1952 a 1959. Em seguida, alinhou firmemente Cuba à órbita da União Soviética, e, com isso, levou o país a se tornar campo de batalha da Guerra Fria. Em abril de 1961, os Estados Unidos buscaram derrubá-lo e falharam. Um exército recrutado entre exilados cubanos e treinado pela CIA tentou invadir a ilha pela Praia de Girón, na Baía dos Porcos, mas foi repelido pelas forças cubanas. Um dia antes, com a invasão iminente, Fidel anunciara, pela primeira vez, o caráter socialista da revolução.
Um ano depois, Fidel aceitou que a URSS instalasse em Cuba, a 100 quilômetros dos EUA, mísseis capazes de transportar ogivas atômicas. A Crise dos Mísseis pôs o mundo à beira da guerra nuclear, só evitada devido a uma certeira cartada diplomática do presidente John F. Kennedy, com reciprocidade do líder soviético Nikita Khrushchev, derrotado no confronto.
A Cuba de Fidel Castro teve papel destacado em tentativas de exportar a revolução, inclusive para o Brasil. Che Guevara, que conhecera Fidel e o irmão Raúl no México, foi quem liderou essas iniciativas. Ele deixou Cuba em 1965 com destino ao CongoKinshasa, onde não teve sucesso. Mais tarde se dirigiu à Bolívia com o mesmo objetivo, mas acabou capturado por forças bolivianas, assistidas pela CIA, e terminou sumariamente executado.
Tropas cubanas atuaram na guerra civil de Angola, uma das mais longas (1975-2002) e cruéis da Guerra Fria, com cerca de meio milhão de mortos. Lutaram ao lado do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), apoiado por Moscou e que saiu vencedor. Entre os adversários estava a Unita (União Nacional pela Independência Total de Angola), amparada pelos EUA e pelo regime do apartheid da África do Sul.
O colapso soviético, avalista do regime de Fidel, lançou a ilha numa severa crise que obrigou o ditador a admitir coisas até então impensáveis, como a liberalização do uso de dólares e uma acanhada abertura da economia. Só o carisma de Fidel, aliado a uma severa repressão interna e com a ajuda do embargo americano, permitiu-lhe manter os cubanos sob controle, apesar de todos os rigores a que foram submetidos durante a década de 90, chamada eufemisticamente de ‘‘Período Especial’.’
A saída de cena de Fidel abre para Cuba uma chance óbvia de acelerar o processo de reformas na economia iniciadas de maneira tímida por Raúl, e lançar um projeto de transição rumo à democracia. Morto Fidel, a jornalista cubana Yoani Sánchez, dissidente, registrou no seu blog a existência de uma atmosfera de medo na ilha. “Dias complicados virão’.’
Há sempre o risco, nesses momentos, em ditaduras, de tentativas de golpe por grupos que usufruem do poder. Aqui entra o papel crucial da diplomacia americana e latinoamericana, com o Brasil em posição de liderança (ainda bem que já sem simpatizantes do castrismo no Planalto e no Itamaraty). Washington, por exemplo, não pode deixar que os radicais de Miami — exilados cubanos visceralmente anticastristas — pautem suas ações e intenções.
A comunidade latino-americana responsável e a diplomacia multilateral devem atuar como moderadoras entre forças tão díspares quanto os herdeiros de Fidel, os reformistas e os dissidentes do regime, assim como os exilados cubanos.
A morte do ditador e a instabilidade em que se lança Cuba devem, ainda, levar as esquerdas a refletir sobre o saldo final de um regime que imolou as liberdades e outros direitos humanos em nome de uma pretensa justiça social. Está claro que não valeu, e não vale, a pena.
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