quinta-feira, 20 de junho de 2019

*Fernando Schüler: O outono do Executivo-príncipe

- Folha de S. Paulo

Estamos em um momento de aprendizagem para a democracia

Esta semana vimos ruir uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro. O governo fez o que pôde. O presidente mobilizou sua base mais fiel, via redes sociais, e lançou mão de um argumento vindo direto do século 18, vinculando a posse de armas à defesa da democracia. Mas não deu.

O governo perdeu, por óbvio, porque não possui uma base orgânica no Congresso. Boa parte dos analistas políticos, muitos com bons argumentos, enxergam isso como um grave problema. Se o governo tivesse cumprido as tarefas do presidencialismo de coalizão, teria aprovado com facilidade o seu decreto das armas. Como não fez o trabalho de casa, deu no que deu.

De minha parte, não vejo isso como grande problema. Acho positivo que o Congresso, sem faca no pescoço ou distribuição de recursos políticos por parte do Executivo, rejeite a flexibilização, via decreto, do Estatuto do Desarmamento.

É irrelevante aqui discutir o mérito da questão. Há quem seja a favor e contra a liberação de armas. A democracia é assim. Acho engraçado quem julga que a democracia só é boa quando suas ideias e seus políticos favoritos ganham o jogo. Não é o meu caso. Ninguém é dono da verdade na democracia, ainda que isso soe como uma ideia terrível para muita gente.

Cansei de escutar que a liberação das armas era mais um exemplo de que nossa democracia estava em risco. Quem me lê sabe que nunca acreditei nessa conversa, e agora temos a resposta: não era o decreto que ameaçava a democracia, mas a democracia que terminou fulminando o decreto. Metabolizou (como diria Marina) mais um item da agenda conservadora (não precisam me lembrar que não se trata do “verdadeiro” conservadorismo), assim como fez com tantos outros, e prosseguirá fazendo.

O mesmo Congresso que dinamitou o decreto das armas aprovou, na outra semana, a suplementação orçamentária requerida pelo governo. Houve concessão de recursos para educação, habitação popular, ciência e tecnologia, e a matéria obteve unanimidade. Talvez tenha ocorrido algum milagre, ou quem sabe apenas um exemplo simples do que tenho chamado de lógica de corresponsabilidade.

Um pouco antes, ainda, o Congresso aprovou a nova lei das agências reguladoras. Bloqueou nomeações políticas, ampliou prazos de quarentena, em um movimento na direção oposta aos interesses do varejo político, representados no próprio parlamento. Outro episódio isolado, como o da aprovação da MP das companhias aéreas, além do avanço da reforma da Previdência? É possível.

Minha hipótese é que vai se cristalizando um novo modus vivendi na relação Executivo-Congresso. O Congresso vem aprovando e recusando matérias com maior autonomia e com base em consensos provisórios. E a democracia não parece estar à beira do abismo por causa disso, ao contrário do que tendemos a achar após algum tempo inalando toxina ideológica e raiva política na bolha digital.

Se você era crítico em relação ao decreto das armas, Escola sem Partido e outros itens da chamada agenda conservadora, dê graças que o governo não dispõe de um rolo compressor no Congresso. Faça um brinde ao fato de que não dispomos mais de um Executivo-príncipe, ao estilo do que nos levou à maior crise de nossa historia recente, em 2015-2016, pela qual ainda pagaremos durante muitos anos.

No mundo imaginário da política, estamos diante de um perigoso risco de plebiscitarismo e erosão democrática. No mundo real, o que vemos é outra coisa: um governo politicamente frágil e de baixo consensodiante de um Congresso avesso à agenda conservadora, ainda que surpreendentemente favorável a temas de modernização econômica. E o mesmo pode-se dizer do STF. Em ambos os casos, não se trata propriamente de uma má notícia.

Antes que alguém diga que o argumento é bom para o atual governo, preste atenção: ele não é. A lógica da corresponsabilidade e o protagonismo parlamentar vêm mais da fragilidade do que da força do atual governo. É um momento de aprendizagem para nossa democracia, e intuo que logo adiante emergirá um novo modelo de coalizão majoritária no Congresso.

O tempo só não é de aprendizagem para aqueles que já sabem de tudo. Felizmente, não é meu caso.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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