- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Até hoje, nem o povo nem o governo definiram com clareza o que pretendiam e pretendem. o que já claro é que o projeto da nova ordem é o de transformar os brasileiros num povo barato
O governo eleito em 2018 chegou ao poder com um discurso nebuloso de desmonte do Estado que conhecíamos até o dia 31 de dezembro. Só isso. Nada dizia, porém, sobre o que era propriamente o desmonte. Foi eleito, com a cumplicidade de um eleitorado cansado, cuja prioridade era também desmontar o até então conhecido, vivido e, para muitos, sofrido.
Um inquietante sinal estava posto diante dos olhos de todos: a maioria queria desmontar, mas desmontar o quê? Sobretudo, quem seria o desmontador? E o que seria, propriamente, desmontado?
Até hoje, nem o povo nem o governo definiram com clareza o que pretendiam e pretendem. O que já está claro é que o projeto da nova ordem é o de transformar os brasileiros num povo barato. A cada avanço no projeto, a bolsa sobe. Mas as condições sociais da população continuam na incerteza.
A maioria que colocou o presidente no poder, claramente, queria o desmonte do Estado petista. O Estado corroído pelo populismo de Lula. Os que não queriam desmontar o Estado lulista nem queriam desmontar o Estado fisiológico e oligárquico do nosso passado republicano, também queriam desmontar algo, sem dizer exatamente o quê.
Extensa parcela da população ainda não se pronunciou. Estamos vivendo o silêncio cinzento da espera. Pode ser que daí resulte que o povo descubra sua real motivação transformadora e, liberta do aparelhismo de partidos e caudilhos, retome a opção pelos movimentos sociais, a alternativa forte para partidos fracos.
É preciso entender, porém, que só as revoluções desmontam o Estado. E o fazem em nome de um Estado que represente a concepção de poder de uma sociedade alternativa, a de um projeto histórico. Revoluções expressam inquietações sociais, consciência social das iniquidades próprias do distanciamento insuportável entre a realidade do vivido, o carecido e a possibilidade do novo e da inovação política.
Erram as esquerdas quando agem como se a bandeira da mudança social e política fosse bandeira da direita. Continuam não conseguindo decifrar o real. A direita desmuda, mas não muda a realidade. Imobiliza-a, tenta fazer a história recuar, anula conquistas sociais. Direita não faz revoluções, pois para fazê-las é preciso discernimento, isto é, consciência crítica e, com ela, a dimensão universal do humano.
Lula e o petismo, desprovidos de uma teoria da práxis, apesar da retórica de esquerda, representaram a ascensão política do popularismo de ascensão social da baixa classe média. A que usurpou as esperanças dos pobres e trabalhadores.
Baseada em vagas ideias sobre as possibilidades históricas da cultura popular, dos grupos populares e dos movimentos populares, inventou o neopopulismo embutido no popularismo de cooptação. O popular não é necessariamente emancipador nem de esquerda. A cultura popular está cheia de concepções de recuo nas conquistas sociais. Manifestou-se nas eleições de 2018.
Bolsonaro e seu difuso e confuso consórcio político não são diferentes, a não ser no fato de que ele está aquém de Lula. A escolaridade de Lula é insuficiente, e ele se orgulha disso, deprecia os intelectuais, jactava-se de ser capaz de governar sem diplomas universitários e leituras. Mas ele é excepcionalmente inteligente. É capaz de ouvir antes de falar. Sabe aprender. Errou na prática por ouvir demais assessores menores do que ele, que confundiram populismo com popularismo. Foi benevolente com os bajuladores, que abriram a sepultura para o seu carisma.
Bolsonaro não se orgulha de sua escolaridade notoriamente modesta. Diferente de Lula, não percebe suas insuficiências de compreensão da realidade política e da realidade social. Faz afirmações desinformadas, como a de que na universidade pública brasileira não há pesquisa científica, quando a pesquisa de ponta, no Brasil, é feita na universidade pública, laica, gratuita e democrática.
Com afirmações como essa, causa danos às instituições, desestimula os cientistas, abate seu ânimo. Louva os sofríveis, usa os toscos para praticar sua guerrilha ideológica de direita e desviar a vigilância cívica dos desacertos de seu governo errante e pobre de perspectiva e de projetos. Tem dificuldade para perceber a diferença entre o popular e o ridículo, como se viu na encenação em torno da copa recente, quando Tite e um jogador recusaram-se a apertar-lhe a mão oportunista. Expõe e desgasta a instituição da Presidência. Entrega o protagonismo da governação a terceiros e se perde na cultura superficial do espetáculo político.
Não será no jogo de pingue-pongue ideológico, que tanto a esquerda quanto a direita assumiram, que o Brasil encontrará a saída civilizada, justa e culta para a democracia e a justiça social.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).
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