Quem
adota na eleição nome de palhaço ou debochado e se comporta como tal no poder é
inimigo do povo porque deprecia as altas funções sociais e políticas das
instituições que o representam
Desde
que uma lei federal de 1997 admitiu a possibilidade de que os candidatos
alterem o próprio nome civil para adotar na urna um nome que diga ao eleitor
quem são, o lado oculto de muitos políticos veio à luz. Por esse meio,
fragilidades da composição do sistema político brasileiro também ficaram
visíveis.
O
voto é instrumento de representação política. Por meio dele, o eleitor e
cidadão se faz presente na tomada de decisões sobre a ordem política.
Representação quer dizer presença do ausente. Mas não quer dizer ausência do
representado. Mesmo que meu candidato não seja eleito, eu estarei representado
pelos eleitos. Como corpo político, são o corpo simbólico da nação, do qual
faço parte.
No
voto, há um pacto entre o povo e o poder. Por meio dele, delego à maioria
formada na eleição minha vontade política de cidadão, e não estritamente ao
candidato em que votei. Goste ou não dos eleitos.
Há
uma certa resignação cívica do eleitor vencido, o que não significa abrir mão
de sua militância cidadã contra as ideias e a conduta do vencedor, sobretudo se
não tratar com respeito as ideias dos vencidos. É isso a civilização na
política.
O
que envolve reciprocidade. Os eleitos não representam a si mesmos, engano
frequente que, quando cometido, atesta que as eleições são para muitos renúncia
de quem vota à representação de sua vontade política, e o mandato acaba sendo
exercido como usurpação e roubo dos direitos políticos do povo e da propriedade
privada do eleito. Não adianta o eleitor ser cidadão se o eleito não o é, nem
sabe sê-lo.
Quem
adota na eleição nome de palhaço ou nome debochado e se comporta como tal no
poder é inimigo da sociedade e do povo porque deprecia as altas funções sociais
e políticas das instituições que o representam. Partidos que perfilham esses
mascaramentos não são partidos.
Muitos
brasileiros encaram as anomalias que há no uso do nome de urna como indicação
de que somos um povo politicamente ignorante e bizarro. Só num certo e limitado
sentido o somos porque no Brasil o Estado conspira todo o tempo contra a
consciência propriamente política.
O
uso de apelido como nome de urna, no entanto, tem entre nós raízes
antropológicas e históricas. Uma primeira fonte antropológica dos apelidos
brasileiros é a tradição indígena dos nomes secretos. O nome só é conhecido por
quem o deu.
Um
caso célebre é o da brasileira branca Helena Valero, do Amazonas, raptada
quando adolescente, nos anos 1930, pelos índios ianomâmi. Na tribo, no rapto
que durou 20 anos, casou duas vezes e teve quatro filhos. Só conseguiu escapar
em 1956. Ficou sabendo o nome de seu primeiro marido quando ele morreu.
Uma
segunda fonte é a tradição comunitária e familiar das populações rurais, de que
todos somos herdeiros, em que as pessoas são designadas pelos vínculos de
família e procriação. Mesmo já adultas, são designadas pelo parentesco,
geralmente com a mãe: Tonho da Maria, Zeca [Jeca] da Nhá Florinda. O apelido
sobrepõe ao nome formal a precedência de um nome relacional, comunitário e
afetivo. O que é peculiar da organização das sociedades tradicionais.
Hoje,
a atribuição mesmo dos apelidos que parecem depreciativos da pessoa apelidada,
como alguns de conotação racial, é rito de incorporação simbólica da pessoa
apelidada à comunidade de família ou à comunidade local, mesmo que seja para
inferiorizá-la.
Se
há pouco caso pelas instituições em muitos nomes de urna, a maioria parece ser
de nomes decorrentes da profissão ou da ocupação da pessoa. Ao acaso, valho-me
de Anápolis, Goiás, cidade culta e próspera. Estes são alguns dos nomes de urna
destas eleições: Alessandra Campos da Funerária, Diego da Ortopedia, Beto do
Gás, Zé do Fogão, Wilson do Gesso, Ary do IPTU.
Quase
sempre profissões de valimento dos que a esses profissionais recorrem em
momentos adversos. Resquício do clientelismo político brasileiro, da troca de
favores. Propina ideológica sendo cobrada no pedido de voto. Sobretudo a função
pública sendo utilizada não como serviço à sociedade, mas como favor privado.
Sem
contar pastores e militares, como tais identificados, que esperam os votos dos
que entendem que os políticos e a política precisam mudar de endereço: ou o
templo ou o quartel ou a delegacia de polícia. Uma explícita negação do que é a
política.
A
Justiça e os partidos toleram essas anomalias que viciam e corroem o sistema
político. Às vezes proíbem nomes como o de Paulo Bosta, de Bauru, vendedor de
esterco, porque “é vulgar, irreverente e, sim, contrário aos bons costumes”.
Esses nomes, no entanto, deveriam ser vetados porque ao desmoralizar os
candidatos que os usam, desmoralizam a função a que concorrem, que é a que
justifica o voto.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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