Sucesso
eleitoral de Bolsonaro inspirou outros oportunistas a apostar na imoralidade
como estratégia
Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.
Há
algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a
uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que,
sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os
que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos
princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por
honradez, são tratados como fracos.
Quando
Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal
adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso
seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem
feito à democracia no País.
Como
se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o
tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu
condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à
reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave
de um adversário para tentar lhe tomar votos.
Ao
contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de
dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma
disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria
toda sorte de barbaridades.
Não
faz muito tempo, a presidente Dilma Rousseff, de triste memória, reconheceu que
ela e seus correligionários faziam o “diabo” em época de eleição. Tal admissão
causou na ocasião uma compreensível repulsa por parte dos cidadãos de bem, já
bastante agastados com as artimanhas tinhosas do lulopetismo, mas ao mesmo
tempo foi útil para revelar até onde estavam dispostos a ir o sr. Lula da Silva
e seus discípulos para se agarrar ao poder.
Rasgada
a fantasia de campeão da ética, com a qual o lulopetismo enganou muitos
incautos por décadas, ficou claro para todos que a política, conforme concebida
pelo PT, não era mais uma disputa de ideias, mas guerra aberta em que o
adversário devia ser aniquilado.
Nisso
o PT encontrou em Jair Bolsonaro seu inimigo ideal. Desde os tempos de deputado
do baixo clero, o hoje presidente se notabilizou por defender nada menos que a
destruição – física, até – de seus oponentes. Bolsonaro elegeu-se presidente
criando e explorando fake news em redes sociais para desmoralizar seus
concorrentes, atualizando o conceito de “fazer o diabo” na campanha.
Uma
vez na Presidência, Bolsonaro não perde seu tempo governando, coisa que, de
resto, seria incapaz de fazer; concentra suas energias em sua campanha
antecipada pela reeleição e, para esse fim, não se constrange em explorar a
pandemia de covid-19 e seus cerca de 160 mil mortos para tentar ganhar votos.
Estimula aglomerações, menospreza a vacina e incentiva os cidadãos a tomar
remédio sem eficácia comprovada, tudo para se livrar do fardo de liderar o País
neste momento tão difícil e para atribuir a terceiros – seus adversários
políticos – a responsabilidade pela crise.
O
sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou muitos outros oportunistas a apostar na
imoralidade como estratégia de campanha. Assim, uma verdadeira malta de
arruaceiros políticos, a exemplo do mestre, investe na confusão e na
truculência como ativo eleitoral.
Resta
torcer para que a rejeição a candidatos apoiados tanto por Bolsonaro como por
Lula, detectada em algumas pesquisas, se confirme, pois assim ficará claro que
nem todos os eleitores se sentem confortáveis em viver numa sociedade
desprovida de solidariedade e respeito ao próximo, que é a sociedade idealizada
pelos liberticidas bolsonaristas e lulopetistas.
Mais confusão que estratégia – Opinião | O Estado de S. Paulo
Plano
do governo mistura ganhos de eficiência com defesa de costumes
Se der tudo certo, a economia crescerá 3,5% ao ano até 2031, a pobreza diminuirá, os lixões sumirão, haverá avanço tecnológico, o aborto será combatido e os vínculos familiares serão fortalecidos – pelo menos segundo a recém-anunciada Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil. Essa estratégia está embutida num decreto presidencial, um documento cheio de intenções, vazio de explicações e contaminado pela mistura de assuntos públicos e valores privados.
Os
objetivos básicos são facilmente defensáveis. É preciso desemperrar a economia,
acelerar seu crescimento, reduzir as desigualdades e alcançar índices mais
altos de desenvolvimento humano. Também é fácil citar algumas condições
indispensáveis. Nenhum plano será exequível sem contas públicas sustentáveis e
credibilidade fiscal. Além disso, expansão econômica mais rápida e duradoura
dependerá de maior produtividade e, portanto, de melhor ambiente de negócios e
de mais investimentos em capital físico e capital humano.
De
novo, ajustes e reformas aparecem como essenciais para o fortalecimento econômico.
O documento propõe aprimoramento dos sistemas previdenciário e tributário, mas
sem detalhar as mudanças necessárias. A omissão é especialmente inquietante no
caso dos tributos.
A
reforma deve combinar mudanças nos três níveis de administração? Deve incluir a
recriação da CPMF, defendida com insistência pelo ministro da Economia? Quais
devem ser – esta é a questão mais importante – os objetivos dessa reforma? E
como se poderá combiná-la com os padrões internacionais atualmente em
construção?
Alguns
pontos ficam mais estranhos quando se consideram os padrões seguidos, até hoje,
pelo presidente e por seus ministros. Segundo o documento, é preciso ampliar os
“esforços em educação, ciência, tecnologia e inovação”. A educação, em todos os
níveis, é recurso básico para formação de capital humano. Mas nenhum ministro
da Educação, desde janeiro de 2019, se dedicou de forma séria e produtiva à sua
área de responsabilidade.
Nada
se fez, em 22 meses, para favorecer o desenvolvimento educacional. Quem ficou
mais tempo no posto, sempre com forte apoio do presidente, notabilizou-se pelos
ataques a universidades e pelas tentativas desastradas de interferência.
Universidades foram descritas como centros de orgia e de produção de maconha.
Seu substituto imediato apresentou um currículo fabuloso e ficou cinco dias no
posto.
O
atual titular ganhou fama, rapidamente, por descrever jovens homossexuais como
produtos de famílias desajustadas. Não exibiu, até agora, mais qualificações
para o posto que qualquer antecessor desde janeiro de 2019. Resumindo: ao
propor a ampliação dos “esforços em educação”, o decreto sugere algo diferente
do realizado até hoje no mandato do presidente Bolsonaro?
Mas
o ponto mais estranho é a existência desse documento sobre estratégia de longo
prazo. Afinal, nem o Orçamento de 2021 foi claramente definido até agora. Além
disso, ainda falta um plano – modesto e essencial – para sustentação da
retomada no próximo ano.
Só
apareceu, até agora, uma explicação para o documento: o presidente Jair Bolsonaro
recebeu de seu antecessor, Michel Temer, um estudo preliminar para um plano
estratégico. Alguém decidiu aproveitar pelo menos essa herança.
Dois
pontos do decreto, no entanto, combinam com a atualidade. O primeiro é um claro
alerta da equipe econômica. Se predominar a frouxidão fiscal, defendida por uma
ala do Executivo, o resultado será uma enorme crise. Se houver alguma
seriedade, o crescimento dependerá de reformas estruturais mais ou menos
ambiciosas. O segundo ponto combina com a pregação de costumes do presidente e
da ministra Damares Alves. A ideia de “promover o direito à vida, desde a
concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro”, é mais uma
promessa de combate ao direito do aborto. Esse foi o tema do chamado Consenso
de Genebra, um acordo firmado na semana passada em nome do Brasil, dos Estados
Unidos e de vários países ultraconservadores.
O poder das agências reguladoras – Opinião | O Estado de S. Paulo
Decisão
do Supremo Tribunal Federal protege e reafirma o papel da Anvisa
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade da Lei 13.269/2016, que havia autorizado o uso da fosfoetanolamina sintética, também conhecida como “pílula do câncer”, em pacientes com neoplasia maligna. Ainda que os efeitos da lei estivessem suspensos desde maio de 2016, por força de uma liminar proferida pelo plenário da Corte constitucional, a decisão de agora protege e reafirma o papel da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, por consequência, de todas as agências reguladoras.
O
Poder Legislativo está acima das agências reguladoras. É o Congresso, por
exemplo, que define as políticas que essas autarquias de regime especial
deverão seguir na regulação e no acompanhamento das suas respectivas áreas de
atuação. No entanto, e aqui está o ponto principal da decisão do STF, essa
superioridade do Legislativo não equivale a uma permissão para que o Congresso
atue no lugar das agências.
No
caso, o Congresso havia autorizado o uso como medicamento da fosfoetanolamina
sintética sem a devida aprovação da Anvisa. Logo após a promulgação da lei, a
Associação Médica Brasileira (AMB) ajuizou uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (Adin), sustentando que, pela falta de testes da
substância em seres humanos e pelo desconhecimento sobre a eficácia e os
efeitos colaterais do medicamento, a liberação da “pílula do câncer” feria
direitos e garantias constitucionais, como os direitos à saúde, à segurança e à
vida, bem como desrespeitava o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
Em
seu voto, o relator da Adin 5.501, ministro Marco Aurélio, lembrou que a
permissão para distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos
cientificamente validados, é competência da Anvisa. Não cabe, assim, ao
Legislativo, ao Executivo ou ao próprio Judiciário autorizar no País o uso de
substância química como medicamento. Essa atribuição – que inclui autorização para
industrialização, comercialização e importação com fins comerciais – é
unicamente da Anvisa, que, no exercício dessa função, deve seguir procedimentos
cientificamente comprovados.
Assim,
também a agência reguladora não detém poder despótico ou arbitrário sobre sua
área de atuação, devendo respeitar os devidos protocolos. Por exemplo, a Anvisa
não poderia ter aprovado a fosfoetanolamina sintética, uma vez que, tal como
lembrou o ministro Marco Aurélio, não houve nem mesmo o protocolo de pedido de
registro da substância perante a agência.
No
Estado Democrático de Direito, o exercício do poder deve sempre respeitar as
respectivas competências e os devidos procedimentos. Com razão, essa realidade
é frequentemente lembrada em relação ao funcionamento do Executivo, Legislativo
e Judiciário. Cada um dos Três Poderes deve respeitar as atribuições dos outros
dois, sem se imiscuir em searas alheias. Mas esse estrito respeito às
competências institucionais também se aplica a todas as esferas do poder
público, sob pena de exercício arbitrário do poder.
É
de reconhecer, portanto, que o descuido com que as agências reguladoras foram
tratadas pelo Executivo federal nos governos de Lula e Dilma – descuido que em
boa medida também se observa na gestão Bolsonaro – não revela apenas uma
incapacidade de enxergar os benefícios que essas autarquias podem trazer para o
cidadão, em termos de economia, eficiência e transparência. O desrespeito ao
âmbito e à natureza das agências reguladoras explicita também uma profunda
incompreensão sobre os limites do exercício do próprio poder, aspecto
fundamental de um Estado Democrático de Direito.
As
agências reguladoras receberam um grande impulso nos dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso. Produziu-se não apenas um ganho de eficiência, mas houve um
impressionante avanço institucional. No ano passado, o Congresso aprovou a Lei
Geral das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019), cuja tramitação contou com
especial atenção do governo de Michel Temer. É preciso progredir no respeito ao
papel das agências. O País só tem a ganhar.
Os limites da política errática de Bolsonaro – Opinião | O Globo
Imobilismo
de olho em 2022 cobra preço no desgaste dentro do governo e na rearticulação da
oposição
O
governo não para de dar demonstrações de falta de rumo. O conflito entre os
ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho já deveria ter sido resolvido, sob a
coordenação do Planalto. Bastaria a fidelidade declarada de Bolsonaro ao teto
de gastos para apartar a briga. Mas não, não acabou, como se viu ontem nas
indiretas disparadas por Guedes no Congresso contra Marinho, a quem chamou de
“ministro gastador”, municiado por economistas a soldo da Federação Brasileira
de Bancos (Febraban), qualificada como “casa de lobby” .
Guedes
também não esclareceu a posição do governo sobre a nova CPMF e negou que a
intenção do decreto que assinou com Bolsonaro fosse privatizar Unidades Básicas
de Saúde (UBSs). O decreto foi revogado ante a avalanche de críticas previsíveis,
a maioria infundadas. Mas o Planalto deveria ter agido antes. Chama a atenção
que tenha tratado na surdina de tema tão polêmico.
A
confusão revela a distância de Bolsonaro para a realidade. O presidente vive
num mundo paralelo. Chega a ser risível que, enquanto há um programa de
privatizações a cumprir, o Planalto abra outra frente.
É
indiscutível que a saúde pública só teria a ganhar com métodos de gestão do
setor privado, como demonstram inúmeras experiências do próprio SUS. A questão
é outra. Qual o sentido de pôr a nova frente em marcha se a privatização da
Eletrobras está paralisada e a dos Correios mal começou?
Nada
se faz sem articulação com o Parlamento. E o Congresso já mostrou ter condições
de deliberar em sessões virtuais. Bastaria Bolsonaro ter vontade e talento para
política. Privatizar o que está na fila, além de promessa de campanha, é peça
crucial no ajuste fiscal. Que envolve ainda as reformas tributária e
administrativa, postergadas para as calendas pós-eleitorais.
Reforça-se
a percepção de um governo paralisado, esperando o tempo passar. O presidente
nada faz que afete seu projeto de reeleição, em que uma estratégia coerente de
reformas não vale nada perto das curtidas nas redes sociais.
Só
que o imobilismo tático de olho em 2022 tem custo. O capitão reformado pode ter
achado que, ao se cercar de generais, blindaria o governo. Prova de que estava
errado é o artigo publicado pelo ex-porta-voz e general Rêgo Barros no “Correio
Braziliense”. “O poder inebria, corrompe e corrói”, diz o texto, para depois
contrastar o “memento mori” (lembra que morrerás) dito aos generais vitoriosos
na Roma Antiga com os “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de
seguidores de ocasião” dos dias de hoje.
Está
dado o recado da caserna. A política errática de Bolsonaro, confiando no
Centrão e no apoio das redes para o que der e vier, não tem provocado apenas
choques entre aliados. A oposição já se articula para o enfrentamento, como
demonstra a reunião do ex-presidente Lula com Ciro Gomes. Bolsonaro não deve
entender a popularidade em alta nas pesquisas como licença para absurdos. Para
o país, a conta da paralisia já está cara demais. Nalgum momento, será cobrada
dele também.
Debate sobre nova lei de lavagem põe em risco sistema anticorrupção – Opinião | O Globo
Discussão
de novo projeto em comissão da Câmara abre as portas a leniência, compadrio e
retrocesso
Há
mérito na iniciativa da Câmara em abrir o debate sobre a modernização da Lei de
Lavagem de Dinheiro. A legislação tem lacunas e é preciso eliminar a
insegurança jurídica em casos de crimes financeiros. Mas a comissão encarregada
do projeto da nova lei deve ter cautela ao instaurar freios e contrapesos.
Alguns integrantes parecem ter identificado uma oportunidade para estabelecer
formas inaceitáveis de anistia e de amenizar a punição a crimes de colarinho
branco.
Dos
44 que formam a comissão, 24 são advogados, muitos deles representantes
judiciais de agentes públicos — com e sem mandato — em processos da Operação
Lava-Jato. Outros 13 vêm do Judiciário, e 7 do Ministério Público. Ficaram de
fora organismos especializados como Coaf e Receita, cujas contribuições poderão
ser coletadas.
Os
problemas começam quando, no bloco majoritário, afloram ideias como reduzir de
dez para seis anos a pena para o crime de lavagem, que ficaria em patamar
inferior ao delito anterior, a corrupção. Ou introduzir na lei uma distinção
esdrúxula entre lavagem e ocultação de dinheiro de origem ilícita. Ou, ainda,
estabelecer que receber honorários advocatícios não configura lavagem, sob
nenhuma hipótese. Tudo, se possível, com efeito retroativo.
É
a preparação do terreno para uma legislação intencionalmente leniente, em
alguns aspectos sob a justificativa cínica de afirmar a “soberania nacional”
diante de sistemas reguladores globais, como o Grupo de Ação Financeira contra
a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), a que o Brasil
aderiu voluntariamente há duas décadas (hoje em dia, é bom lembrar o óbvio:
quando um país adere voluntariamente a organismos internacionais, está na
verdade exercendo sua soberania, não se sujeitando).
Pode-se
argumentar que a comissão está em fase de debates, sem definições. Há, ainda
assim, coerência entre a tendência nas discussões e o que se observa na
preparação das leis sobre temas como prisão após a condenação em segunda
instância ou improbidade administrativa. Nos três casos, a Câmara tem conjugado
cada vez menos o verbo avançar. Em vez disso, tem preferido retroceder — em
benefício da delinquência de colarinho branco.
O
presidente da Casa, deputado Rodrigo Maia, deveria intervir, caso não queira
ver a sua gestão elogiável terminar com o sinal verde a um retrocesso na prevenção
e repressão à corrupção. As consequências serão nefastas à lei e à ordem
interna, com sequelas no comércio exterior e na segurança dos investimentos.
Até agora, o protagonista do recuo em favor dos corruptos tem sido o
Judiciário. Parece que, a exemplo da Itália na Operação Mãos Limpas, o
Legislativo não quer ficar atrás.
Fortalecer o SUS – Opinião | Folha de S. Paulo
Pandemia
evidencia deficiências do sistema, que precisa de dinheiro e gestão
O Estado brasileiro consome uma parcela elevada da renda nacional, mas ainda assim presta serviços deficientes e mantém áreas vitais subfinanciadas. A pandemia de Covid-19 jogou mais luz sobre algumas dessas carências.
A
experiência do auxílio emergencial evidenciou lacunas na rede de seguridade,
como a proteção falha a trabalhadores informais, e suscitou o debate sobre a
ampliação do programa Bolsa Família. Outro setor submetido a estresse durante a
crise sanitária foi, obviamente, a saúde pública.
Como
a Folha noticiou, abriram-se durante a calamidade, em caráter
temporário, 14.843 leitos
de UTI adultos e 249 pediátricos, que se somaram aos 22.841
disponíveis no SUS no início do ano. Corretamente, as providências não
estiveram submetidas ao teto fixado para as despesas federais.
Desde
então, com a desaceleração do contágio, quase dois terços dos novos leitos já
foram fechados. Secretários da Saúde, agora, mobilizam-se para que se incorpore
à rede hospitalar ao menos parte do restante —afinal, já havia déficits a serem
sanados antes do surgimento do novo coronavírus.
O
argumento é decerto plausível. Se o gasto público brasileiro está entre os mais
elevados do mundo quando se trata de servidores públicos, Judiciário,
aposentadorias e juros da dívida, o mesmo não se pode dizer das dotações da
saúde.
Estas
equivalem a 3,9% do Produto Interno Bruto, percentual inferior ao verificado em
vizinhos como Argentina (4,9%) e Uruguai (6,4%). Nos EUA, também considerando
somente o dispêndio governamental, são 8,5% do PIB.
Um
necessário reordenamento das prioridades do Estado, de fato, deve ter o SUS
como um de seus beneficiários principais. Mesmo antes de reformas mais
profundas, não há óbice legal ao reforço da área no Orçamento de 2021 —embora
seja impossível, claro, sanar rapidamente todas as deficiências.
Tal
objetivo demanda não apenas dinheiro, que será escasso por muito tempo, mas ajustes
gerenciais: há que racionalizar a distribuição de hospitais de
acordo com o porte dos municípios, organizar um cadastro nacional eletrônico de
pacientes, estudar mudanças na remuneração dos serviços.
O
emprego de organizações sociais e outras entidades é uma opção a ser
considerada, por permitir gestão mais ágil, em particular na contratação e dispensa
de pessoal.
Trata-se
de processo a ser conduzido com diálogo e transparência, como o demonstra a
recente trapalhada do governo Jair Bolsonaro com a edição e revogação
de um decreto que previa estudos para parcerias com a
iniciativa privada nas Unidades Básicas de Saúde.
Muita
confusão e alarido político seriam e serão evitados com o esclarecimento de que
o SUS, universal e gratuito, é conquista da sociedade consagrada na
Constituição.
Bolsonaro
usa tom ativista em documento; TJ-SP toma decisão absurda contra ONG
Em
trecho de um documento oficial intitulado Estratégia Federal de Desenvolvimento
para o Brasil, que traça diretrizes para o período 2020-2031, o governo Jair
Bolsonaro achou por bem encampar a retórica de
movimentos conservadores contrários ao aborto.
Dentre
as medidas voltadas a “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”,
o texto do Planalto define como meta “promover o direito à vida, desde a
concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de
políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às
gestantes”.
É
legítimo, obviamente, que um presidente ou qualquer outro político defenda suas
convicções e busque levá-las, pelos meios democráticos, às políticas públicas.
Isso dito, cumpre apontar que a associação entre desenvolvimento e restrição a
direitos de interrupção da gravidez destoa da experiência das sociedades mais
avançadas.
Como
advoga esta Folha, trata-se de tema a ser encarado sob a ótica da saúde
pública, de modo a preservar a vida e a segurança das mulheres. Assim tem
entendido um número crescente de países.
O
governo brasileiro esteve em má companhia ao assinar, neste mês, certa Declaração de
Consenso de Genebra —do suposto consenso antiaborto
participavam outras 30 nações, entre elas os EUA de Donald Trump, a Hungria de
Viktor Orbán, Indonésia, Egito e Uganda.
A
gestão Bolsonaro, ademais, atenta até contra as possibilidades previstas na lei
e na jurisprudência —os casos de estupro, risco à vida da mãe e feto
anencéfalo.
Portaria
do Ministério da Saúde criou constrangimentos para os médicos que realizam
procedimentos; revelou-se que a pasta de Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos tentou intervir na interrupção da gravidez de uma menina estuprada de
apenas dez anos.
O
cerco, infelizmente, não se dá apenas por parte do Executivo federal —como se
viu na recente decisão do Tribunal de Justiça paulista de impedir que a ONG
Católicas pelo Direito de Decidir, favorável à legalização do aborto, utilize a
referência religiosa em seu nome.
Beira
o escárnio que uma corte judicial em um país laico se arrogue o direito de
dirimir questões eclesiásticas, em violação à liberdade constitucional de
associação.
BC vê alta da inflação como temporária e mantém juro – Opinião | Valor Econômico
Com
grandes incertezas sobre a recuperação da economia, não faria sentido mudar o
tom da política monetária
O
Banco Central manteve a taxa básica de juros em 2% - o que era amplamente esperado
-, mas evitou dar qualquer sinal que mudará a instância da política monetária
em direção a um aumento da Selic. Apesar de o BC ter errado significativamente
em sua projeção de curto prazo (setembro, outubro e novembro), há bem pouco
tempo o nível de preços parecia definitivamente submerso abaixo do piso da meta
e há amplo espaço até que ele se aproxime da meta (4%). O BC avalia que a alta
da inflação é temporária e arrefecerá. A pressão para que o BC se mova continua
vindo do risco do fim da âncora fiscal, o que o forçará a tomar outro rumo.
Há
vários fatores, todos eles provisórios, que estão empurrando os preços para
cima. As commodities estavam em alta, pelo menos até o mergulho dos mercados na
quarta-feira, diante de nova onda de covid-19 na Europa e nos EUA,
suficientemente forte para abalar as perspectivas de recuperação global. A
elevação das cotações foi potencializada pela valorização do dólar, de 43% no
ano até quarta, que colocou o real como a “pior” moeda de países relevantes. A
tradicional gangorra, de que commodities em alta são acompanhadas por dólar em
baixa está emperrada pelas dúvidas crescentes sobre o futuro da política
fiscal.
A
grande demanda externa, com desvalorização do real, que reduziria poder de
compra doméstico, conviveu com o aumento da demanda interna, decorrente do
auxílio emergencial, que, especialmente no Norte e Nordeste elevou a renda
disponível dos segmentos que proporcionalmente mais gastam alimentos e certos
bens industriais - móveis, roupas, eletrodomésticos, os que, junto com bens
agrícolas, mais puxam o IPCA para cima.
Com
o aumento da demanda, porém, intercedeu um fator extraordinário, decorrente da
pandemia. Ela retirou parte da oferta do mercado pela impossibilidade de
produção causada pelo distanciamento social. Outra parcela relevante da oferta
foi abalroada pelo desaparecimento de milhares de pequenas empresas, que têm
papel intermediário relevante na cadeia industrial.
O
pêndulo da inflação pode se deslocar mais à frente. As limitações que o retorno
da covid-19 colocará à produção nos países desenvolvidos deprimirão algumas
commodities - o que já ocorre com o petróleo - e terão novamente efeito
deflacionário, como na primeira onda. Os fatores que desarrumaram a oferta
aqui, porém, são passageiros, se não houver recrudescimento da pandemia - mas,
nesse caso, consumo e produção recuarão juntos, diminuindo a pressão
inflacionária.
Igualmente
importante, o valor do auxílio emergencial já foi cortado à metade, o que
retira fôlego do consumo e empurra as incertezas para depois de quando se
encerrar, em dezembro. O Copom aponta que “a incerteza sobre o ritmo de
crescimento da economia permanece acima da usual”.
Ainda
há fundadas dúvidas sobre o fôlego da recuperação da economia brasileira de
2021 em diante. Pelas previsões do FMI e do Focus, ela só é forte em comparação
à queda de 2020, mas nada vigorosa em si nem em comparação com a da maioria dos
países. Não faria o menor sentido já sinalizar a possibilidade, ainda que
remota, de aumento de juros.
Há
enorme folga inflacionária em relação à meta, o que não dá direito ao BC de ser
afoito. O Relatório de Inflação previa IPCA de 0,4% em setembro (foi 0,64%),
0,3% em outubro (o IPCA-15 marcou 0,94%) e 0,27% em novembro. Mesmo que os “top
five” do Focus acertem o que virá - 0,82% em outubro, 0,42% em novembro e 0,51%
em dezembro - a inflação dificilmente passará de 3,1%. Isso porque o IPCA foi
muito alto no bimestre final de 2019 - 0,51% em novembro e 1,15% em dezembro.
Será preciso um fôlego de alta maior e mais generalizado - e, ademais, sem
contar com pressão dos serviços, ainda deprimidos - para que a inflação possa
forçar o BC a rever os planos.
O
balanço de riscos se desequilibrou para um lado, mas não foi o da inflação. “O
risco fiscal elevado segue criando uma assimetria altista, ou seja, com
trajetórias para a inflação acima do projetado no horizonte relevante para a
política monetária”, aponta o Copom.
Se não se sabe qual o ritmo da economia a partir de 2021, e se os riscos externos tendem a ser desfavoráveis ao crescimento (mas não tanto à inflação), não havia motivos para o BC mudar sua prescrição futura. A possibilidade de um corte de juros não foi descartada, corretamente. Resta a enorme encrenca fiscal, mas esse é um assunto espinhoso fora da alçada do Banco Central.
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