Revista Veja
O mais provável é que logo poderemos voltar
a dizer que nossos políticos e empresários “são todos de centro, até de
centro-esquerda”
Houve um tempo em que a esquerda detinha
ampla hegemonia na vida brasileira. Isso vem de longe. No regime de 64, o poder
estava com os militares, mas não a hegemonia no mundo da cultura. Esta sempre
pertenceu à esquerda, e não vai aqui nenhum juízo de valor. Em seu Cultura e Política, do fim dos anos
60, Roberto Schwarz já observava que “há relativa hegemonia cultural da
esquerda. Ela pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de
marxismo, nas estreias teatrais…”. E conclui: “nos santuários da cultura
burguesa a esquerda dá o tom”.
Nos anos 80, com a redemocratização, a
esquerda consolidou sua hegemonia nos sindicatos, nas universidades, na feitura
dos livros didáticos, no mercado editorial. “Editoras grandes não topavam
publicar nossos livros”, me comentou tempos atrás um velho dirigente liberal,
“então recorríamos a editoras pequenas, e praticamente tínhamos de comprar toda
a edição.” Antonio Candido observou, em seu Direito à Literatura, de 1988, que era raro, naqueles
anos, topar com algum empresário ou político que arriscasse se dizer um
conservador. “São todos invariavelmente de centro, até de centro-esquerda,
inclusive os francamente reacionários.”
O auge dessa hegemonia se deu em algum
momento da virada dos anos 2000. A vitória de Lula, em 2002, foi uma expressão
disso, mas curiosamente também o início de uma lenta virada. Quando Lula sai do
poder, em 2010, com seus mais de 80% de aprovação, uma transformação silenciosa
vinha ocorrendo. Movimentos liberais, antes marginais, ganhavam espaço. Crescia
a presença de vozes “conservadoras” na imprensa. A longa permanência no poder
cobra seu preço, nesse caso acrescido pelo sabor amargo dos escândalos de
corrupção. “Todo império cai”, me observou, à época, um bom amigo. A esquerda
ocupou Brasília, mas perdeu muito de sua sintonia com a sociedade.
Uma “nova direita” ganhou expressão no país nos inícios dos anos 2010. Em parte, ela foi o resultado não intencionado da própria lógica de polarização empreendida por Lula na Presidência. A retórica excludente simbolizada pela repetição exaustiva do “nunca antes neste país”, que inundou o debate público. Lula consagrou, em grande estilo, a ideia do presidente-parte. Alguns gostam, outros não. Não julgo. A “nova direita” que hoje ocupa Brasília faz o mesmo, e diria que de um modo bastante menos sutil.
A carga ideológica, de um lado, leva à
reação na mesma moeda, do outro. Há muito disso na gênese da onda conservadora
brasileira. Seu ecossistema foi a internet, um ambiente livre e fora do
controle das instituições, sejam partidos, sindicatos, academia ou mídia
convencional. A internet deu poder aos indivíduos e fez explodir pautas antes
contidas pelo filtro das instituições. Pautas ligadas à religião e aos
costumes, em um país com 30% de população evangélica. Em 2011, quando o Supremo
legalizou a união homoafetiva, o ibope mostrou que 55% da população era contra
(hoje são 33%). Se alguém acha que o Brasil é mais conservador hoje do que era
dez anos atrás, observe os dados.
Acho graça quando escuto discussões sobre a
“natureza” da onda conservadora que ajudou a levar Bolsonaro à Presidência.
“Não se trata da grande tradição conservadora”, muitas vezes escutei. Por
óbvio. O que andava pela cabeça das pessoas era menos Burke e mais os sermões
do pastor Malafaia, de Olavo de Carvalho e, claro, o salvacionismo popularesco
de Bolsonaro. A nova direita que emergiu, sob muitos aspectos, é a antítese de
valores básicos da tradição liberal-conservadora e seu gosto pela prudência,
vezo antipopulista e cuidado com as instituições e sistemas de freios e
contrapesos.
O tipo de conservadorismo que Bolsonaro
expressou é um fenômeno próximo ao que Pippa Norris e Ronald Inglehart
descreveram em seu livro Cultural
Backlash. A reação, feita “pela geração mais velha, homens e menos
educados” à longa revolução silenciosa ocorrida nas democracias, desde os anos
70, envolvendo uma “crescente tolerância à diversidade sexual, direitos LGBT,
identidades fluidas de gênero, hábitos e valores descolados da religião,
estilos de vida multiculturais e suporte cosmopolita a agências multilaterais”.
É difícil não enxergar nessa lista todos os ingredientes em torno dos quais se
organizou a retórica que levaria Bolsonaro à Presidência em 2018.
“Bolsonaro
ainda tem força para reunir multidões, mas vem perdendo o jogo”
Interpretação mais compreensiva do fenômeno
foi dada pela socióloga de Berkeley Arlie Hochschild, que buscou quebrar a
visão binária progressistas X regressistas culturais. Hochschild foi a campo
investigar a angústia conservadora, e o fez indo morar numa cidade sulista,
tradicionalista e esmagadoramente republicana. É dela a conhecida metáfora da
fila em que todos esperam, pacientemente, seu ingresso no sonho americano, até
perceber que há pessoas passando na frente. Não importa exatamente se são
brancos, negros ou imigrantes. A imagem dos fura-filas de certo modo inverte o
jogo: são os conservadores que se põem na defesa das regras do jogo, que uma
miríade de grupos bem organizados pretende “ajustar” segundo sua agenda
política e cultural.
O estudo de Hochschild fala da pluralidade
do mundo social. Muita gente ainda teima em julgar como não legítima a
emergência de posições conservadoras em seus diferentes matizes. Muito do que
se viu, no Brasil dos últimos anos, foi isso. A recusa de quem sempre controlou
o jogo em dividir o palco com “essa gente”, em geral brega, barulhenta, com
valores e uma estética “inacreditável”, como tantas vezes escutei em eventos
elegantes por estes anos.
O ponto é que as coisas agora mudaram. A
internet, espaço outrora livre, é crescentemente vigiada. Um espaço
“recolonizado”, como li por estes dias, pelas instituições, pela maré dos
cancelamentos, pela ação das big techs. Boa parte do que se passou a discutir
sobre o iliberalismo progressista, em especial o rápido declínio dos valores
associados à liberdade de expressão.
No plano político, Bolsonaro ainda tem
força para reunir multidões, mas seu governo, de um modo geral, vem perdendo o
jogo. Não redundou em “golpe” nenhum, como prometiam seus inimigos. Apenas
segue claudicante, produto das próprias inconsistências. Seu governo tem 58% de
rejeição (PoderData). As reformas andaram pouco, a inflação a dois dígitos, e
nossa economia continua fechada como sempre. A agenda anticorrupção foi
embora, com Sergio Moro, a difusa pauta conservadora morreu no Congresso, e o
discurso antissistema terminou em um abraço com o Centrão. Bolsonaro, e não
faço aqui juízo de valor, vai pavimentando a volta, em grande estilo, da
hegemonia da esquerda no país. Os sintomas disso são claros. A rejeição a
Lula foi de 57%, no início de 2016, a 38% (Datafolha), e é fácil observar a
alegria do entorno do ex-presidente com a perspectiva de enfrentar Bolsonaro no
ano que vem.
A onda conservadora encolheu.
A política é dinâmica, o vento sempre pode mudar, mas não há sinais nessa
direção. O mais provável é que logo poderemos voltar a dizer que nossos
políticos e empresários “são todos de centro, até de centro-esquerda”, como fez
o mestre Antonio Candido lá atrás. Que isto seja bom ou não para o país cabe a
cada um julgar, como é próprio a uma grande democracia, como a brasileira.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 20 de outubro de
2021, edição nº 2760
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