quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Luiz Roberto Nascimento Silva*: A proteção do mais fraco

O Globo

Com a pandemia, aumentaram enormemente as ligações de telemarketing. Tinham diminuído, voltaram com força total. Muitas vezes desligam na cara da gente logo que atendemos porque, se conseguem que o usuário atenda, ganham pontos. O celular aposentou o fixo, que virou peça de museu. A maioria de meus amigos não atende mais números desconhecidos. Entretanto, quando se espera um serviço ou o contato de alguém não cadastrado, temos de atender.

Não adianta bloquear, pois as operadoras não nos protegem, e o bloqueio cai em pouco tempo. O site federal e o estadual que eram eficientes não funcionam mais. Você, o incomodado, o importunado, tem de gastar um tempo enorme preenchendo sua reclamação, que, na maioria das vezes, é ignorada. Exigem informações adicionais, detalhes para aceitar a reclamação. Indicam um número pequeno de empresas listadas como um cardápio fixo em que você tem de fazer seu pedido. Não aceitam pedidos de bloqueio de telefones simplesmente. Você tenta e não consegue. Enquanto isso, os algoritmos discam para você. O inferno são literalmente os outros, como advertiu Sartre, só que transfigurados em chamadas telefônicas.

Sabemos todos que a revolução digital é irreversível. O fato de algo ser irreversível não impede que não possa ser melhorado. Do ponto de vista individual, uma proteção maior deve ser dada ao cidadão. O direito à privacidade, à inviolabilidade das correspondências e ao espaço íntimo dos desejos e fantasias pessoais não pode ser violado pela ganância dos algoritmos. Isso tudo foi conquistado por longas lutas da sociedade e não pode ser devastado apenas por interesses comerciais de poucos. Parodiando Dostoiévski, podemos dizer que “se não há privacidade, tudo é permitido”.

A privacidade foi sempre um valor importante nas relações humanas. A humanidade a privilegiou. O pombo-correio era meio seguro de enviar mensagens. O lacre existia para proteger e individualizar correspondências. A adoção de códigos e senhas nos dava uma garantia razoável de tempo até ser quebrados, o que hoje qualquer jovem operador de tecnologia consegue num piscar de olhos. A Declaração dos Direitos Humanos da ONU, promulgada em 1948, indicou que o ser humano não deveria sofrer interferência em sua vida privada, nem na sua correspondência.

O economista Paul Romer, ganhador do Nobel de Economia de 2018, no ano de sua indicação não atendeu dois telefonemas da Academia Sueca porque, no horário, achou que era propaganda. Na ocasião, indicou que nos EUA as ligações de telemarketing e spam são frequentes; mas, na Europa, não. Sugeriu que as empresas de telefonia deveriam pagar a cada um de nós uma pequena quantia por ligação de telemarketing ou de spam sem fundamento. A frase soa como provocação, mas, enquanto não existirem sanções econômicas para esse tipo de abuso, ele perdurará. O Direito é uma invenção do mais fraco. O mais forte não precisa dele, porque tem o monopólio da força. Somos os mais fracos nesse admirável mundo digital e precisamos nos unir. Tratar de forma desigual os desiguais é um dos princípios de equidade e uma das funções da política. Cabe ao Estado nos proteger das estruturas e instituições que não controlamos.

*Advogado,  foi ministro da Cultura

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