O Globo
Em ano eleitoral, os candidatos esperam que
o eleitor se comporte como se estivesse diante da televisão na hora da novela;
no teatro esperando abrirem-se as cortinas; no cinema, serem apagadas as luzes
—e então se dê o milagre da suspensão voluntária da descrença.
Poderiam avisar, como Orson Welles em
“Verdades e mentiras”, que o que vem a seguir é sobre trapaça, fraude e
mentiras, mas que o filme, em si, é baseado em fatos sólidos. Seria pelo menos
meia verdade.
Suspendemos a descrença para mergulhar, sem
amarras, na arte. Para nos iludir com a perspectiva e aceitar a terceira
dimensão numa tela plana. Ver o personagem por trás da máscara do ator, admitir
que o tempo passe noutro ritmo, que uma sugestão no palco se torne um cenário
completo. Para deixar que palavras escritas se transfigurem em personagens não
só de carne e osso, mas com mais alma que a maioria de nós.
É preciso descrer das evidências para transcender e penetrar no mundo superiormente interessante da arte.
Isso quando o gatilho é um Fassbinder, a
nos mentir a 24 quadros por segundo. Uma Hilda Hilst, nos arrastando em seu
vórtice; um Sérgio Ferro, um José Miguel Wisnik, um Antunes Filho, um Sebastião
Salgado. Em ano eleitoral quem entra em cena é o marqueteiro.
A essa figura compete nos convencer da
troca da realidade por um simulacro, uma versão unidimensional — e
infinitamente inferior — de si mesma.
O artista nos catapulta; o marqueteiro quer
porque quer nos achatar. Não é culpa dele, coitado, que está só tentando ganhar
a vida honestamente nos empurrando uma fraudezinha disfarçada de boas
intenções, uma mentira sincera aqui e uma semiverdade marota acolá.
Tanto quanto o artista, ele atua na chave
do ilusionismo. Mas se ilusão da arte tem a ver com o lúdico (a origem
etimológica é a mesma); a do marqueteiro se ancora na percepção distorcida.
Ele vai tentar nos convencer de que o
candidato X defende valores cristãos, mesmo tendo sido desonesto, desleal,
intolerante, insensível ao sofrimento alheio. Que é um paladino da família, em
luta contra a degeneração dos costumes — enquanto tratou foi de salvar a pele
da própria prole, tendo feito do seu lar um antro de falcatruas. Exibirá como
resultado de seu governo uma imunização em massa que salvou milhões de vidas —
escamoteando sua luta incessante contra as vacinas.
Vai suar a camisa para demonstrar o apreço
democrático do candidato Y, que defende regimes de força e não esconde o desdém
pela imprensa livre, pelo livre mercado, pela liberdade de pensamento. Que
insistirá em repetir o que já deu errado, e que não tem como dar certo, nem
nunca terá. Vai, num jogo de espelhos, fazer desaparecer o governo mais
desastroso que este país já teve. (Nota mental: lembrar onde foi que li que
Dilma é a pior presidente do Brasil; Bolsonaro é apenas o pior presidente da
galáxia).
E ainda há o encarregado de provar que uma
penca de candidatos Z quer a união em torno de uma terceira via.
A suspensão da descrença nos permite a
arte, a marquetagem política e a religião. Que saibamos quando usá-la com
discernimento — ou sem moderação.
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