O Estado de S. Paulo
A transição do caos para a esperança
precisa contar com os melhores brasileiros, não importam suas simpatias
ideológicas.
Logo antes do segundo turno, vimo-nos numa
onda de disparates e surrealismo. Agressões a tiros de um Rambo septuagenário e
mambembe contra a polícia se somaram à ameaça armada de uma deputada contra um
homem negro. Os dois atos são amostra da patacoada bárbara trazida pelo atual
presidente.
Passadas as eleições, as excrescências
disfuncionais não cessaram, com um bando de exaltados ocupando praças e
estradas desrespeitando a ordem e o resultado das urnas, como crianças tiranas
que não concordam com o resultado do jogo democrático.
Muito além de partido ou candidato, do
outro lado formou-se uma aluvião falando de paz, mudanças e esperança. Gente
que quer tocar sua vida, batalhar seu ganha pão, educar os filhos, ter acesso à
saúde e segurança.
Tivessem vencido os primeiros, estaríamos
condenados à boçalidade como padrão de relacionamento da sociedade consigo
mesma e com o mundo lá fora. Mas a sociedade não premiou o mau comportamento.
Ela disse basta, queremos fazer um país!
Durante o segundo turno, o grupo Derrubando Muros juntou-se a outros grupos apartidários numa carta de amor ao Brasil: A gente faz um país. O texto é de Antonio Prata; o título, de Mauro Dorfman; e a canção, você sabe, eternizada pela diva Marina Lima. Falamos de solidariedade, empatia, progresso científico, tolerância e justiça. Contra os gritos e as agressões, vestimos a túnica branca dos bons auspícios.
Como eu, a maioria de nós nunca havia
votado no PT antes. Mas, por uma destas transcendências da vida, saímos da
cabine com a leveza dos que sabem que fizeram o que os valores humanitários
mandavam, aproximando-nos da reconciliação e da justiça, inclusive para os que
votaram em transe extremista.
O presidente Lula e seu partido têm crédito
indiscutível nesta cruzada. Mas a onda cívica foi muito maior do que um partido
ou um líder. A aliança dos partidos foi “atropelada” pela união pela base, por
pessoas comuns que, descobrimos, tinham muito claro o seu papel. Cidadãs e
cidadãos que nunca haviam posto o pé na política se juntaram até com quem divergiam
para barrar os que antagonizam com a vida.
Não precisamos de um tratado de Ciência
Política para saber que o maior responsável pela vitória foi o povo brasileiro.
Todos os demais atores foram coadjuvantes. Lula e Geraldo Alckmin têm
responsabilidade histórica. Por imposição do momento, terão de ser maiores que
suas biografias. Captando o espírito dos tempos, quando Lula fala em governo
dos melhores brasileiros, a expectativa é de uma orquestra de ases pondo o País
nos trilhos e conquistando o futuro para todos os brasileiros.
Para estarem à altura do desafio, vão
precisar entender que a bricolagem inédita de 2022 não pode ser subestimada
como foram as manifestações de 2013, resultando na erupção aberrante de 2018.
Os herdeiros da Constituição de 1988 talvez não sejam os mais bem equipados
para entender a distopia que a falta de entregas da democracia engendrou. A
principal evidência disso é a perplexidade diante dos 58 milhões de eleitores
representados por uma extrema direita reconhecida como a mais destrambelhada do
planeta.
Há bastante para ser compreendido e mais
para ser feito na agenda de passagem ao futuro. Nossos jovens mais bem
preparados não podem ter como única saída o aeroporto; a maioria negra não é um
problema a ser resolvido, é a solução; e a participação equânime das mulheres
tem de ser o novo padrão.
Qualquer coisa menor do que um governo do
Brasil para todos os brasileiros seria um erro grave que o presidente Lula já
anunciou que não cometerá. Mas, mesmo com os melhores a seu lado, o
represamento de dores e exclusões acumuladas demandará uma arquitetura política
inovadora como nunca tivemos. Com as tecnologias sociais e políticas
incumbentes não será possível construir as mudanças imprescindíveis.
Há vida fora dos partidos e das instituições.
O novo governo precisa se conectar colaborativamente e escutar a sociedade mais
do que resgatar conselhões de palácio.
Que o presidente Lula é a quintessência da
luta por igualdade de oportunidades ninguém pode duvidar. É um privilégio
termos Lula para liderar este resgate de milhões de brasileiros para uma vida
digna. Que Lula vem com o espírito brando para investir na pacificação do
Brasil, disso também não temos dúvida.
Há um desafio, porém, que não espera na
fila. O Brasil tem andado de lado, perdeu-se do fluxo de desenvolvimento
mundial, e nós precisamos voltar a crescer, gerar empregos e oportunidades
qualificadas. Isso é complexo, requer tecnologia de ponta e talentos
empreendedores trabalhando num ambiente regulatório eficiente para fecundar o
Brasil com a criação de valor de que precisamos.
Está aberta a temporada da competência e do
desprendimento, pelo Brasil. A transição do caos para a esperança precisa
contar com os melhores brasileiros, não importam suas simpatias ideológicas.
No dia 30 de outubro a gente começou a
fazer um país. A consolidação, porém, virá da estabilidade e do
compartilhamento do progresso econômico deste Brasil que estamos reinventando.
*Sociólogo, investidor em tecnologia, é
coordenador do grupo Derrubando Muros
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