Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Podemos construir uma forma mais saudável
de governança, num diálogo entre a sociedade, o sistema político e o governo
A lógica da polarização é o maior empecilho
à melhoria da política brasileira. Trata-se de uma armadilha que hoje aprisiona
boa parte da ação do governo, radicaliza o principal polo da oposição - o
bolsonarismo - e tem força política suficiente para evitar o fortalecimento
nacional do centro político. Não há um elixir único para esse problema, mas a
recriação do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS),
popularmente conhecido como Conselhão, pode ser uma boa vacina contra o modelo
polarizador, caso cumpra o objetivo de pluralizar o debate público.
Antes de analisar as potencialidades do
Conselhão, é preciso dizer o que é e quais são os efeitos perversos da
polarização que domina o jogo político brasileiro. A lógica polarizadora atual
não tem nada a ver com a contraposição eleitoral entre forças políticas, algo
natural nas democracias. Não é mais a disputa entre PSDB e PT que está em jogo.
Quem tinha dúvidas, deixou de ter com a fuga do presidente Bolsonaro do país
para não dar posse ao sucessor e, sobretudo, com a intentona de 8 de janeiro,
uma tentativa fracassada de golpe de Estado. Em poucas palavras, o padrão
polarizador colocou o Brasil em risco autoritário.
A polarização move-se basicamente pela busca incessante de atacar e, se possível, destruir o oponente. Neste modelo não há meio termo ou a possibilidade de diálogo, por vezes até fechando a porta para a incorporação de outras forças políticas que não os polos da equação. No caso brasileiro, é verdade que há uma diferença substantiva básica: um dos lados é democrático, o lulismo, e o outro, não - os bolsonaristas.
Mesmo assim, parcela do atual governo
erroneamente se prendeu na armadilha polarizadora, tentando todo tempo fazer
ações para se colocar contra o bolsonarismo e seus aliados - como o senador
Sergio Moro -, inclusive quando isso o enfraquece ou em situações que vão
contra a etiqueta mínima do comportamento republicano e democrático.
Manter esse padrão político atrapalha o
aperfeiçoamento de políticas públicas e a inclusão de outros grupos sociais e
políticos que vão além dos polos. Só que também pode ser uma forma fácil de
manter uma distribuição eleitoral, abarcando quase 70% do eleitorado, que
provavelmente ficará com bolsonaristas ou lulistas aparentemente em qualquer
circunstância, criando uma barreira de entrada difícil de transpor para os
outros partidos.
Ficar nessa toada, porém, é reduzir o
alcance de transformação do país e de ampliação da legitimidade. Apesar de
algumas escorregadas recentes, é estranho imaginar que o presidente Lula, no
seu terceiro mandato, não queira sair maior do que entrou. Além do mais, nada
garante que uma parcela do eleitorado será eternamente fiel a uma determinada
liderança política.
A recriação do Conselhão, agora com um novo
nome que incorpora a questão da sustentabilidade, é uma ideia que pode tirar o
governo Lula e o país da armadilha da polarização. Ao ter insistido com essa
estrutura de diálogo social e mantido o caráter plural de sua composição, o
lulismo deu um passo bastante positivo, construindo uma instituição que pode
cumprir cinco funções importantíssimas.
A primeira é abrir o diálogo entre setores
sociais muito distintos, que não se orientam por uma mesma régua de ideias.
Discordar faz parte da democracia, e em muitas ocasiões é muito saudável.
Rejeitar qualquer conversa, negociação ou aprendizado com quem pensa de maneira
diferente é um caminho para o desastre de uma nação. A polarização fechou
portas para construir consensos em meio a dissensos, que é a grande mágica da
democracia pluralista. O sentido da audição do outro tornou-se raro no debate
público, e vence quem grita mais, mobiliza mais likes ou haters, e tal padrão
paralisa o avanço do país.
O sucesso do Conselhão seria bom para nos
tirar, como sociedade, dessa lógica polarizadora marcada pelo ressentimento e
pelo ódio, que interdita o debate público no plano macro e nas esferas
microscópicas da família, do trabalho e até dos jovens na escola. Seu êxito também
seria fundamental para o governo Lula deixar o passado para trás, apostando num
diálogo amplo para pensar o Brasil para frente. Talvez só haja um avanço maior
da ideia de Frente Ampla, com possibilidade de acordos em situações
discordantes em relação ao lulismo, usando o Conselhão como fórum de diálogo
permanente. É possível que nem todos os grupos queiram dialogar e pensar junto,
especialmente setores mais próximos do bolsonarismo, mas isso os isolaria e os
enfraqueceria politicamente.
Melhorar a construção da agenda pública do
país pode ser uma segunda função positiva do Conselhão. O sistema político e
grande parcela da sociedade estão amarrados à polarização, o que gera
dificuldades para o trâmite de medidas propostas pelo governo e a abertura da
discussão de novas temáticas. Se deixarmos apenas aos atores de Brasília a
definição da pauta nacional, o mais provável é que a velocidade das mudanças
será menor - isso se estas não forem vetadas. O CDESS não deve ser, em hipótese
alguma, um órgão antipolítico, mas um canal de conversa com os políticos
eleitos. Isso poderá fortalecê-los, ademais, de modo que esse fórum se tornaria
um antídoto contra o descasamento com a sociedade que gera mobilizações como as
jornadas de 2013, cujos resultados, ao fim e ao cabo, foram estéreis para a
população e para a melhoria do sistema político.
Seguindo essa lógica, o Conselhão poderia
ajudar em dois tipos de agenda. O primeiro refere-se àquela definida como
prioritária pelo governo e pelo Congresso, dando sua opinião e mostrando outros
ângulos para temas que já estão na ordem do dia. De forma paralela e
complementar, o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável seria
fundamental para trazer novas temáticas que ainda não foram captadas pelos
políticos. Seria uma antena parabólica de alta potência porque não se pode
entender tudo que ocorre no Brasil estando em Brasília.
Há uma terceira função que diz respeito à
forma viciada - e cada vez mais contra a democracia - da produção e discussão
de ideias no mundo virtual. O Conselhão pode gerar um mecanismo de debate e
mediação social que se coloque como contraponto à truculência e à surdez
interpessoal causadas pelas redes sociais. Nenhum país pode definir seus rumos
pelas brigas e posicionamentos na internet, como por vezes ocorreu durante o
governo Bolsonaro. O encontro presencial e sem “máscaras” no CDESS dos
diferentes grupos em torno de pautas relevantes para a sociedade é bem melhor
do que o jogo ardiloso dos haters, influenciadores extremistas, perfis falsos e
robôs.
Obviamente que o Conselhão não irá
substituir as redes sociais, mas a qualidade de seu debate pode realçar os
vícios da política hegemônica da internet de hoje. Se cumprir bem seu papel
educativo como fórum de discussões, pode ser um espaço ideal para colocar em
questão a produção virtual de fake news e outras formas de ódio e violência que
se espalham por diversas comunidades, atingindo desde idosos que acreditam em
discos voadores que vão dar o golpe, até jovens que preparam virtualmente o
assassinato de colegas e professores nas escolas. Em poucas palavras, o
Conselhão pode ser um dos melhores remédios contra a epidemia de intolerância
que assola o país.
A quarta função do Conselhão deve ser
ajudar o país a reconstruir suas instituições políticas principais. Há um
processo crescente de crise e transformação errática desde 2013, com seu pior
momento no governo de extrema direita de Bolsonaro, mas que não será aprumado
apenas porque Lula e o antibolsonarismo venceram a eleição de 2022.
O presidencialismo de coalizão está em
frangalhos, com um desequilíbrio entre o Legislativo e o Executivo que precisa
encontrar novas formas de respeito, cooperação e responsabilização. O sistema
de Justiça também precisa se recuperar, começando por um modelo mais colegiado e
parcimonioso de decisões do STF, e terminando por uma nova visão dos órgãos de
controle e fiscalização, que não deve adotar o jacobinismo dos promotores da
Lava-Jato, e nem ser controlado pelo Executivo de forma autocrática, tal qual
ocorreu no período bolsonarista.
Além disso, vai ser preciso fortalecer o
aspecto cooperativo da Federação. A agenda é grande e conflitiva, e o CDESS
pode ajudar nesse debate, pois a polarização lulismo versus bolsonarismo pode
atrapalhar ou retardar o aperfeiçoamento do sistema político.
Por fim, o Conselhão pode ter a quinta
função de pensar num projeto de longo prazo para o país. É claro que o
Executivo pode utilizar seus técnicos, como os do Ipea, para fazer um
diagnóstico amplo e prévio, mas um fórum mais plural como o CDESS tem mais
chances de ter isenção e legitimidade para apoiar a construção de caminhos para
além do governo de plantão. Essa é uma questão urgente, porque o mundo está
passando por enormes transformações, e as nações que não tiverem projeto de
futuro ficarão para trás.
Se o Brasil continuar sob o signo da
polarização, nossos filhos e netos terão uma vida pior. Por isso, quando o novo
Conselhão abrir seus trabalhos no dia 13 de abril, poderemos construir uma
forma mais saudável de governança, na qual vigore um diálogo potente entre a
sociedade, o sistema político e o Governo Lula.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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