Folha de S. Paulo
Não adianta ignorar traumas profundos, eles
voltam para nos perturbar
Presidente, entendo que o senhor prefira
fugir de questões desconfortáveis. Todos fazemos isso. É mais fácil ignorar
velhas dores do que encará-las. O problema é que traumas profundos permanecem
silenciosos até que voltam a nos perturbar como músicas irritantes que grudam
no cérebro dias a fio. Foi o que aconteceu nos últimos anos, quando o hino
nacional embalou um projeto golpista. Dá para acreditar que falaríamos sobre
ditadura na segunda década do século 21?
Veja, eu não era nem nascida em 1964. Quando o Brasil recuperou a democracia, nem entendia o valor da liberdade. Só adulta tomei conhecimento das violações generalizadas, da censura, das perseguições políticas, das torturas e das mortes. Mas há brasileiros que não sabem ou não acreditam nas atrocidades cometidas neste país tão alegre, tão do bem, tão da galera, por pura negligência do Estado, que nunca foi capaz de encarar os esqueletos escondidos na caserna.
O resultado é que censura, golpe, regime de
exceção voltaram a ser pauta nos jornais, assunto no almoço de família,
objetivo de uma turma autoritária. Décadas para passar o passado a limpo, mas
se viu mais empenho em não melindrar militares do que em punir torturadores,
honrar vítimas e fortalecer o Estado de Direito.
Em 2008, presidente, o senhor foi contra a
revisão da Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos durante a ditadura
militar. Agora determina que eventos oficiais em memória dos 60 anos
do golpe sejam evitados. Para não irritar milicos que já estão irritados porque
correm o risco de levar gancho porque são o que são, golpistas?
Presidente, somos ainda uma sociedade
vulnerável e cheia de traumas, que voltam como um vizinho chato que finalmente
reclama do barulho. O tempo não separa o passado do presente e muito menos
evita que ele se repita. O que enterra períodos brutais da história é
investigação, processo, cana e memória viva.
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