Correio Braziliense
Não há atores políticos mais necessários para
a melhoria da qualidade da política do que vereadores e prefeitos. Ao
reconhecer essa importância, talvez seja possível um novo alvorecer da
democracia brasileira
As eleições municipais costumam ser um
momento de aferição de tendências que, processadas pelas máquinas partidárias,
orientam a definição das listas de candidatos e estratégias para a corrida
eleitoral ao Congresso Nacional. Além disso, ajudam a moldar os discursos para
postos majoritários de governadores e presidente da República, antecipando
elementos que devem integrar a estratégia de alinhamentos e acordos
partidários.
Este ano, há um novo fator a ser considerado. Além da consolidação de três grandes forças — lulopetismo, bolsonarismo e aquilo que nos acostumamos a chamar de centrão —, o efeito Pablo Marçal surge como novidade que transforma olhares e parece ter impacto em várias corridas eleitorais ao redor do país.
Neste exato momento, pouco importa se o
candidato que, em algum sentido, rivaliza com o próprio Bolsonaro em torno das
preferências eleitorais à direita será ou não vencedor da eleição na capital
paulista. De certa forma, já conseguiu mudar a equação, ainda que em sentido
deletério à civilidade e à política como espaço de deliberação democrática. A
sua atuação, que vai de ofensas pessoais a físicas, serve simbolicamente para
demonstrar uma encruzilhada da política e do próprio debate público nacional.
Para colocar em uma fórmula sintética, a
encruzilhada se expressa na seguinte questão: afinal, para que servem as
eleições municipais? A resposta objetiva do ponto de vista jurídico é a de que
este momento serve para a definição dos gestores municipais, que, supostamente,
devem aportar soluções para as nossas cidades. No entanto, quando nos
debruçamos sobre os humores do eleitorado, a resposta corre o risco de ser
distinta e com duas importantes implicações práticas.
A primeira, mais complexa do ponto de vista
de economia de atenção, é a disposição das mídias, seus profissionais e
analistas em todo o país de focarem a maior parte do seu tempo e atenção na
eleição em São Paulo, em detrimento daquilo que acontece nas demais cidades.
Tal constatação, surgida de um diálogo com um motorista em uma capital do sul
do Brasil, gerou alarme: "Se fala tanto de Marçal que parece que ele é o
candidato a prefeito daqui".
Esse movimento atesta a capacidade do
candidato de capturar atenções nacionalmente, mas gera a externalidade negativa
do empobrecimento da reflexão sobre o debate em âmbito local. Parece claro e
urgente a necessidade de compreender que o efeito gravitacional da discussão em
São Paulo atende a muitos atores e vende notícia, mas ignora as necessidades de
aprofundamento do debate público naquele que é o nascedouro da democracia, o
município.
A segunda implicação, decorrência lógica da
primeira, é a emulação de estratégias, ações e comportamentos eleitorais que,
inspirados pelo sucesso midiático de figuras antissistêmicas, deixam de lado a
discussão de propostas para a cidade e passam a discutir temas etéreos ou
prosaicos, quando não descambam para o surreal. Tais discussões, simbolizadas
pela hipótese falseável de que há uma guerra entre brasileiros e que esta é a
definidora do nosso futuro, servem efetivamente para transformar as eleições em
campo de batalha. Essas são discussões alimentadas por uma polarização
persistente, ao mesmo tempo em que torna os cidadãos/eleitores cada vez mais
reféns de uma agenda nociva ao bem público.
É preciso, portanto, que os cidadãos e as
forças vivas da sociedade encontrem maneiras de colocar em marcha uma nova
lógica política. Deve ser uma lógica capaz de compreender efetivamente a
importância dos municípios como nascedouro de soluções para os problemas que
afetam a coletividade. Isso ajudaria a valorizar a política local, ajudando a
tornar evidente que não há atores políticos mais importantes e necessários para
a melhoria da qualidade da política do que vereadores e prefeitos.
Se houver uma consciência mais apurada dessa
importância, talvez seja possível um novo alvorecer da democracia brasileira,
não mais baseada em enfrentamento e descrições pobres da realidade, mas,
sobretudo, na ideia de que a compreensão real da cidadania e seu exercício são
o único meio eficaz de recolocar os políticos na função de verdadeiros
servidores públicos. O risco da reprodução da encruzilhada acima descrita é de
um ciclo que se repete, cuja deterioração que o fenômeno Marçal tão bem
simboliza é o aprofundamento de problemas reais que afetam a qualidade de vida
e que, não enfrentados em nível local, jamais serão efetivamente resolvidos
nacionalmente. A perda da cidade é a perda da cidadania.
*Creomar Lima Carvalho de Souza — Historiador,
mestre em relações internacionais e CEO da Dharma Political Risk and Strategy
Nenhum comentário:
Postar um comentário