O Estado de S. Paulo
O nome desse jogo que o Conselhão não jogou é segurança econômica nacional, e não neoliberalismo radical
O Conselho de Desenvolvimento
Econômico Social Sustentável, o Conselhão, em reunião ocorrida em 4 de
dezembro, encaminhou inúmeras propostas à Presidência da República. Elas seriam
destinadas a concretizar diversos eixos do desenvolvimento social e econômico
do País.
Uma delas seria a “nova Lei de Direito Internacional Privado”.
Esse projeto é um desastre para a economia brasileira. Ele prevê uma
hiperliberalização da ordem jurídico-econômica, num grau que nem mesmo os
governos FHC, Temer e Bolsonaro ousaram sugerir.
A proposta aponta para esse assombroso caminho no ano de 2025, quando o movimento da economia mundial vai, todo ele e com razão, no sentido inverso, com inúmeras políticas de retomada de incentivo ao desenvolvimento das indústrias nacionais; de defesa da soberania econômica; de criação de instituições que deem aos países e seus mercados internos mecanismos de coordenação que os protejam contra as agruras da disputa entre EUA e China, contra as inconstâncias do volátil estrangeiro e perante riscos ainda desconhecidos mas de ocorrência certa, como pandemias ou catástrofes ecológicas.
O nome desse jogo que o Conselhão não jogou é segurança econômica
nacional, e não neoliberalismo radical. E, por fim, a malfadada jogada é feita
para ser concretizada pelo presidente Lula. Logo ele, que é de fato um grande
defensor da soberania, recebe uma proposta que é o seu inverso: a erosão da
soberania econômica.
Seu artigo 29, com um disfarce vago de “salvo caso de abuso”,
empurra a economia brasileira para um regime radical de livre escolha da lei
aplicável, erodindo, desse modo, a imposição da ordem pública econômica, e
impelindo que as decisões microeconômicas convalidemse na própria
macroeconomia.
E, claro, nessa mistura curiosa de dr. Pangloss com Visconde de Cairu (ideias abstratas que se esquecem que o liberalismo de Adam Smith podia ser lido como melhoria da divisão social do trabalho e, portanto, como política industrial, nos termos de Alexander Hamilton), não existe nenhuma preocupação com a economia real, com dados empíricos, com estratégia de desenvolvimento. A proposta é uma pura manifestação ideológica anacrônica, sem nenhum estudo de impacto econômico.
Em seu discurso de 12 de março de 2020, o presidente francês,
Emmanuel Macron, proclamou que “delegar nossa comida, nossa proteção, nossa
capacidade de curar, nosso ambiente social para outros, é loucura”.
Nos idos de 1933, John Maynard Keynes anunciou o abandono de suas
convicções livrecambistas e disparou um texto questionando a globalização da
época. “Simpatizo, portanto, com aqueles que minimizam, e não com aqueles que
maximizariam o entrelaçamento econômico entre as nações. Ideias, conhecimento,
ciência, hospitalidade, viagens – essas são as coisas que deveriam ser
internacionais. Mas que as mercadorias sejam caseiras sempre que for razoável e
conveniente, e, acima de tudo, que as finanças sejam principalmente nacionais”.
A proposta patrocinada pelo grupo “hiperliberal” preconiza que a
globalização conduzirá à homogeneização dos espaços econômicos nacionais e à
convergência rumo ao nirvana do livre mercado. Esse processo ocorreria fora do
escopo das políticas definidas no âmbito dos Estados. Assim, as receitas
liberal-conservadoras recomendam a ampla abertura comercial, em conformidade
com a vetusta teoria das vantagens comparativas, sem as tímidas modificações da
“nova teoria do comércio”, privatizações e não intervencionismo, regras que
emanam de um modelo de equilíbrio geral, de liberalização financeira, lição que
decorre da hipótese dos mercados eficientes.
Não são avaliados 1) os incentivos estruturais que as matrizes das
multinacionais fornecedoras terão para adotar em seus contratos as normas que
lhe são mais favoráveis, como a de suas jurisdições de origem; 2) seus impactos
sobre as milhares de pequenas e médias empresas do Brasil, que serão
tendencialmente submetidas à pressão para aderir aos ordenamentos impostos
pelos grupos fornecedores internacionais, gerando um aumento imenso de
complexidade jurídica e custos de observância contratual; 3) os impactos sobre
as metas de aumento da densidade tecnológica da economia nacional; 4) os
impactos nos setores regulados e todo o conteúdo contratual que deles emana; 5)
os impactos na atuação das empresas estatais brasileiras, entre tantos outros.
Trata-se da mais ambiciosa reforma neoliberalizante da economia
brasileira, capaz de vulnerabilizar e arrasar empresas e setores inteiros,
colocando-os sob o jugo do poder econômico e jurídico de grupos transnacionais,
sem qualquer amparo da ordem pública econômica brasileira, e simplesmente não se
apresenta nenhum dado econômico, geral ou setorial. Somente ideologia. Pura e
simples.
Os conselhos dados pelo Conselhão podem ser úteis e sua recriação foi um ato de respeito à democracia. Esse conselho de erosão da soberania dado pelo Conselhão é uma bola fora: não é conselho de amigo; é um abraço de urso. Trump, Xi Jinping e os líderes europeus defensores ferrenhos de suas empresas e economias internas agradecem esse presente!

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