Guilherme Freitas
A revolução promovida durante o Renascimento Italiano nas artes, nas ciências, na economia e em tantas outras áreas entre os séculos XIV e XVI costuma ser destacada como um momento singular da História ocidental e um marco inicial da modernidade. Um dos principais antropólogos em atividade hoje, o britânico Jack Goody, de 91 anos, dedica-se a desmontar essa interpretação já no título de seu livro mais recente, “Renascimentos: um ou muitos?”, lançado em 2010 e publicado agora no Brasil pela Editora Unesp, em tradução de Magda Lopes.
Professor emérito da Universidade de Cambridge e notório por suas pesquisas sobre os contrastes entre culturas orais e letradas, Goody argumenta que a narrativa sobre a singularidade do Renascimento Italiano (com sua recuperação do conhecimento clássico greco-romano, secularização parcial da sociedade e transição do feudalismo para o capitalismo) foi construída pelos próprios europeus, sobretudo a partir do século XIX, em obras como a pioneira “A cultura do Renascimento na Itália” (1860), do historiador suíço Jacob Burckhardt.
No novo livro, Goody contrapõe a essa narrativa um ambicioso estudo comparativo para mostrar que “as origens da modernidade e do capitalismo são mais amplas e encontram-se [também] no conhecimento árabe [e] nos influentes empréstimos da Índia e da China”, escreve. Sem negar a especificidade do fenômeno europeu, o antropólogo destaca diversos momentos em outras culturas que, assim como o Renascimento Italiano, envolveram tanto um olhar retrospectivo quanto um salto adiante. E aponta que sociedades às vezes vistas como “atrasadas” foram “modernas” antes do Ocidente (o Islã adotou o papel no século X, quando na Europa ainda se escrevia com cera ou couro, e a China tinha prensas com blocos de madeira sete séculos antes de Gutemberg popularizar os tipos móveis, por exemplo).
A omissão às contribuições históricas de outras culturas para a modernidade “estimula uma superioridade falaciosa quase racista em relação ao resto do mundo”, escreve Goody. Em entrevista ao GLOBO por email, ele discute alguns dos casos estudados no livro e expõe essa dimensão política de sua pesquisa, que pode ajudar a compreender também ciclos de crescimento e crise observados no mundo contemporâneo:
— O crescimento atual de China e Índia se deve menos a influências “ocidentais” do que a um retorno a suas próprias tradições de letramento e de trocas culturais e comerciais — diz.
Em “Renascimentos: um ou muitos?”, o senhor escreve que, embora o Renascimento Italiano tenha sido um evento único do ponto de vista histórico, outras culturas também tiveram momentos que envolvem tanto um olhar retrospectivo quanto um salto adiante. Quais desses momentos são os mais significativos e como eles podem ser comparados ao Renascimento Italiano?
JACK GOODY: O Renascimento Abássida (dinastia que liderou um Império muçulmano no Oriente Médio, no Norte da África e no Sul da Europa de 750 a 1258) resgatou a ciência clássica no século IX, influenciando não apenas a criação da ciência islâmica, mas também o Renascimento Italiano, através da preservação e da tradução de muitos textos clássicos. Houve um importante Renascimento na China durante a dinastia Song (960-1279), após o período de domínio do budismo, que revitalizou o aprendizado do confucionismo e das artes. Na Índia as coisas são menos claras, mas durante as dinastias Máuria (321-185 a.C.) e Gupta (399-455) olhou-se muito para a Era Védica (1500-700 a.C.), sem falar no Renascimento Bengalês do século XIX, que fomentou a luta pela independência e por uma nova Índia. Todos esses Renascimentos foram possíveis, assim como o Italiano, devido à existência de culturas letradas, que permitiam um olhar retrospectivo mais preciso do que nas culturais orais. Esse processo de revisitar fontes históricas é crucial para qualquer Renascimento.
O senhor argumenta que, ao contrário do que se costuma pensar, o Renascimento Italiano não foi a chave para a ascensão da modernidade e do capitalismo, que o senhor atribui a interações entre as culturas letradas da Europa e da Ásia. Quais são as consequências, para nossas sociedades contemporâneas, de atribuir esse processo exclusivamente ao Renascimento Italiano?
Isso faz com que não notemos que as sociedades europeias e orientais contemporâneas têm mais em comum do que costuma ser admitido no pensamento e na historiografia ocidentais. A cultura letrada era um traço das principais sociedades da Eurásia, que tinham seus próprios períodos de inércia e renovação. Vemos isso hoje no crescimento de China e Índia, um fenômeno que se deve menos a influências “ocidentais” do que a um retorno a suas próprias tradições de letramento e de trocas culturais e comerciais.
O senhor ressalta que o mundo islâmico se viu repetidas vezes em algum tipo de Renascimento. Qual foi a importância, para esses Renascimentos Islâmicos, do intercâmbio cultural com o Ocidente? E qual foi a contribuição do Islã para o Renascimento Italiano?
O principal Renascimento Islâmico foi o que, entre outras coisas, revitalizou as conquistas científicas da Grécia Antiga e do Império Romano, numa época em que a Igreja Católica, em geral, descartava essa herança por considerá-la “pagã”. Naquele momento, textos filosóficos e científicos clássicos foram preservados, e mais tarde foram redescobertos na Europa durante o Renascimento Italiano. Se não fosse pelo Islã, esses textos teriam desaparecido. Muitos textos foram preservados nas grandes bibliotecas possibilitadas pela adoção do papel pelos muçulmanos, numa época em que os europeus tinham dificuldade de escrever, porque usavam muito o couro, a cera e, apenas para certos fins, papiro importado. Os resultados disso puderam ser vistos na Alta Idade Média em Palermo e Toledo (cidades de Itália e Espanha, respectivamente, que viveram sob domínio muçulmano), aonde europeus ocidentais iam para estudar cultura árabe e também os clássicos. Tudo isso alimentou o Renascimento Italiano. Infelizmente, o Islã depois ficou para trás em relação aos meios impressos, proibindo a impressão da palavra escrita e a representação da natureza na pintura. Essa última proibição também ocorreu no cristianismo medieval e em parte do judaísmo até o fim do século XIX.
Quais são as principais características do Renascimento Chinês, comparado ao caso europeu?
O Renascimento Song foi um período de reflorescimento na China da ciência, da tecnologia e das artes. Isso aconteceu, assim como na Europa, depois da modificação de uma religião hegemônica, o budismo da Índia, que, a exemplo do cristianismo e de outros credos monoteístas, reclamava o monopólio da verdade, inclusive da verdade sobre a natureza. Felizmente para eles, o budismo foi apenas uma das religiões da China, que geralmente encorajou o pluralismo nessa área.
No livro, o senhor sugere que a escrita não fonética, como a chinesa, pode ser um caminho para o futuro de todas as culturas. Por quê?
Porque o sistema não fonético da escrita chinesa não está ligado a uma linguagem (fonética) específica; ele era usado para transcrever todas as linguagens. Essa era a força do sistema chinês, que podia registrar inúmeras linguagens que eram virtualmente incompreensíveis umas para as outras. Já vi chineses que não entendiam o idioma um do outro se comunicarem usando uma mesma escrita. Eles entendiam a escrita um do outro, mas não a fala. Um sistema como esse, baseado em ícones, funciona para nós no caso dos números, que podem ser os mesmos em inglês ou japonês.
O que o atraiu para o estudo da história da cultura letrada? Como esse campo evoluiu nos últimos tempos?
Cheguei a esse campo de estudos através de minha formação em literatura. Mas sobretudo por causa de meu bom amigo Ian Watt (crítico literário britânico), que trabalhava com o romance inglês e a questão da cultura letrada, que considerávamos uma conquista da civilização grega em termos da adoção do alfabeto. Mais tarde, porém, entendi que, ainda que o alfabeto tenha sido muito útil, outros sistemas de escrita, como o chinês, alcançaram níveis comparáveis de letramento e criaram tradições científicas e artísticas em nada inferiores à nossa, embora a nossa tenha florescido de uma forma particular nos últimos tempos. Não foi tanto a escrita alfabética, e sim todo tipo de escrita que produziu resultados espetaculares. Isso vale também para a era da informática.
Como as novas tecnologias podem transformar a cultura letrada?
Acredito que, embora a comunicação eletrônica não deixe os mesmos registros que o papel, ela exige a existência prévia de uma cultura letrada e tem muitos dos mesmos resultados. Ela pode tornar mais complicado o “olhar retrospectivo”, como o do Renascimento, mas pode também facilitá-lo em certas ocasiões. É triste ver as livrarias desaparecerem, mas a cultura letrada está certamente se expandindo, e a tradição escrita também.
FONTE:: PROSA & VERSO/ O GLOBO
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