Investigação de crimes da ditadura não abriga ressentimentos, diz presidente
Numa cerimônia histórica, ao lado de quatro de seus antecessores, a presidente Dilma Rousseff, ex-guerrilheira presa na ditadura militar, instalou ontem a Comissão da Verdade, criada para apurar violações de direitos humanos de 1946 a 1988. Sem conter as lágrimas, Dilma destacou que a iniciativa é um esforço de Estado para revelar a História recente do país, sem revanchismo. "A palavra verdade é o contrário da palavra esquecimento. Não abriga ressentimento, ódio nem perdão", afirmou. Diante dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique e Lula, Dilma destacou o papel de cada um deles para que o Brasil instalasse a comissão, citando também Tancredo Neves e Itamar Franco. Chorou ao lembrar os que morreram na luta contra a ditadura, disse que as famílias de mortos e desaparecidos merecem conhecer a verdade, e, num recado aos militares que resistiram à comissão, disse que a ignorância sobre a História não pacifica, mas, ao contrário, mantém mágoas: "O Brasil merece a verdade." Na primeira reunião, a comissão não definiu se apurará também ações da esquerda.
Verdade sem ressentimento
Dilma instala comissão para apurar crimes da ditadura e destaca política de Estado
André de Souza, Catarina Alencastro e Luiza Damé
Em uma solenidade carregada de emoção, a presidente Dilma Rousseff instalou ontem a Comissão da Verdade - para apurar violações dos direitos humanos praticadas de 1946 a 1988 -, dizendo que a iniciativa não é um ato de revanchismo, mas um esforço para revelar a História recente do país. Para Dilma, a verdade é o contrário do esquecimento, mas não significa ressentimento, ódio nem perdão. A presidente, que foi presa e torturada durante a ditadura militar, chorou e ficou com a voz embargada ao falar sobre o sentimento de parentes de mortos e desaparecidos políticos, que até hoje não têm informações sobre o que aconteceu com seus familiares.
- A palavra "verdade", na tradição grega ocidental, é exatamente o contrário da palavra "esquecimento". É algo tão surpreendentemente forte que não abriga nem o ressentimento, nem o ódio, nem tampouco o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento. É memória e é História. É a capacidade humana de contar o que aconteceu - disse a presidente.
Num recado claro aos militares, que resistiram à instalação da comissão, a presidente afirmou que o não conhecimento da verdade perpetua o rancor, em vez de pacificar as relações não resolvidas entre duas partes que estiveram em lados opostos na ditadura:
- A ignorância sobre a História não pacifica, pelo contrário, mantém latentes mágoas e rancores. A desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância. A sombra e a mentira não são capazes de promover a concórdia.
Ao lembrar o período do qual ela própria participou ativamente como guerrilheira, Dilma teve que interromper o discurso. A presidente se comoveu ao falar dos que morreram durante a resistência ao regime militar, quando ela perdeu amigos e companheiros, e das famílias que até hoje não sabem o paradeiro deles.
- O Brasil merece a verdade. As novas gerações merecem a verdade, e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma História sem voz. E quem dá voz à História são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la - afirmou.
Processo construído passo a passo
Citando Galileu Galilei, Dilma afirmou que nem a tirania pode impedir a verdade de vir à tona. Segundo ela, chegou o momento de o Brasil conhecer a sua História:
- Atribui-se a Galileu Galilei uma frase que diz respeito a este momento que vivemos: "A verdade é filha do tempo, não da autoridade". Eu acrescentaria que a força pode esconder a verdade, a tirania pode impedi-la de circular livremente, o medo pode adiá-la, mas o tempo acaba por trazer a luz. Hoje, esse tempo chegou.
Toda a organização da solenidade buscou dar à Comissão da Verdade um caráter de missão de Estado e não de governo. Dilma se cercou dos quatro últimos presidentes - José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva -, destacando o papel de cada um para que o Brasil conseguisse finalmente instalar a comissão, já criada em outros países vizinhos, como a Argentina e o Chile. Dilma também enalteceu a atuação de Tancredo Neves e de Itamar Franco. Disse estar alegre pela companhia dos presidentes que a antecederam "nestes 28 benditos anos de regime democrático".
- Cada um de nós deu a sua contribuição para este marco civilizatório, a Comissão da Verdade. Esse é o ponto culminante de um processo iniciado nas lutas do povo brasileiro, pelas liberdades democráticas, pela anistia, pelas eleições diretas, pela Constituinte, pela estabilidade econômica, pelo crescimento com inclusão social. Um processo construído passo a passo durante cada um dos governos eleitos depois da ditadura - ressaltou.
A presidente disse que a comissão é uma homenagem a todos que lutaram pela revelação da verdade histórica e demonstra a maturidade política do país. Já está definido que a Comissão da Verdade vai apurar crimes cometidos pelos agentes públicos. Em seu discurso, Dilma procurou encerrar a polêmica criada, desde a escolha do colegiado, sobre o foco da investigação: se incluirá eventuais crimes de militantes de esquerda ou apenas violações dos direitos humanos por parte do Estado.
- O Brasil deve render homenagens às mulheres e aos homens que entenderam e souberam convencer a nação de que o direito à verdade é tão sagrado quanto o direito que muitas famílias têm de prantear e sepultar seus entes queridos, vitimados pela violência praticada pela ação do Estado ou por sua omissão - afirmou.
Dilma disse que não levou em conta critérios pessoais nem avaliações subjetivas na escolha dos sete membros da comissão - Claudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Rosa Maria Cardoso da Cunha e Paulo Sérgio Pinheiro. Para ela, o grupo é plural e identificado com a justiça e o equilíbrio.
Em nome da comissão, falou o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias. Para ele, a Comissão da Verdade ajudará a consolidar a democracia brasileira, mas "sem apedrejamento". Dias afirmou que a comissão vai buscar obstinadamente a verdade. O ex-ministro reconheceu o trabalho de Dilma e dos ex-presidentes Fernando Henrique e Lula para que a comissão pudesse ser instalada, mas não fez qualquer menção a Sarney e Collor.
- É preciso revelar a História para que seja mostrado o que dela foi escondido. A História vale pelo que conta e pelo que dela se espera. Nossos olhos devem estar projetados ao futuro, às novas gerações, na esperança de que a democracia brasileira jamais volte a ser violentada - afirmou.
A cerimônia começou com a leitura de uma mensagem enviada pela comissária de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Naveen Pillai. A comissária parabenizou o país pela comissão, que, segundo ela, permitirá ao Brasil se reconciliar com o passado e consolidar a democracia.
FONTE: O GLOBO
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