De saída, um protesto: que alguns tenham estranhado publicamente o fato de Roberto Schwarz ter demorado 15 anos para escrever sobre “verdade tropical” atesta o quão avançada está a lógica jornalística da “ordem do dia”, a ponto de se evocá-la mesmo diante de um acontecimento inequívoco de pensamento. Isso só confirma o diagnóstico do filósofo Christoph Türcke, de que vivemos numa “sociedade excitada”, viciados em estímulos que se exaurem rapidamente e exigem substituição. Ora, o pensamento não obedece a essa lógica. O pensamento não deve chegar a tempo, mas no tempo, cujo sentido ele tem por tarefa revelar (daí a relação estabelecida por Agamben entre o contemporâneo e o inatual). Assim, não apenas Schwarz, com o atraso constitutivo do pensamento (e sua mundialmente reconhecida inteligência), abre e revela o tempo histórico da matéria narrada por seu objeto, como essa abertura se mostra absolutamente contemporânea: as questões em jogo permanecem vivas e irresolvidas.
O ensaio de Schwarz, reunido no livro “Martinha versus Lucrecia”, divide-se em dois tempos. No primeiro , um Caetano jovem e provinciano alia-se ao desejo das artes de “romper com a herança colonial de segregações sociais e culturais (...) e saltar para a linha de frente da arte moderna, fundindo revolução social e estética”. É o momento, anterior ao golpe de 64, em que se deu o “encontro explosivo” de “experimentalismo artístico sem fronteiras nacionais, subdesenvolvimento, radicalização política, cultura popular onipresente e província, além da hipótese socialista no horizonte”. Esse Caetano, percebido como alinhado às posições da esquerda da época, merece do intérprete elogios em abundância.
O idílio entre o narrador e seu intérprete é quebrado no segundo tempo do ensaio, cujo marco instaurador é a reação crítica de Caetano a uma cena do filme “Terra em transe”. Nela, o jornalista e revolucionário Paulo Martins cala a boca de um líder sindical servil e interpela o público: “Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado!”. Aí onde Schwarz vê um “beco histórico”, um impasse para a revolução (sem que as condições objetivas estruturais do país tivessem se atenuado; pelo contrário), Caetano viu “a morte do populismo”, com efeitos liberadores para sua interpretação e ação sobre a realidade. Schwarz lê a passagem como uma apostasia, a partir da qual Caetano se opõe ao campo da esquerda revolucionária. O tropicalismo se originaria aí, como primeiro movimento pós-moderno, “nascido já no chão da derrota do socialismo”. O astro pop nasce de uma desobrigação com a dívida social histórica com os desfavorecidos, e daí em diante aliar-se-ia ao mercado.
Discordo da interpretação. A própria divisão nítida entre um Caetano pré e outro pós-64 soa forçada. Caetano foi herdeiro de primeira hora da bossa nova, e sua revolução harmoniosa, capaz de integrar esteticamente o local e o cosmopolita, a modernidade e a tradição, cultura popular e vanguarda, pobres e ricos – foi desde o início seu modelo a ser seguido politicamente, como utopia de civilização (o Brasil precisa estar à altura da bossa nova, ele diria repetidamente). Schwarz não o ignora, mas também não percebe que esse modelo já se coadunava mal com o da esquerda convencional, de revoluções sangrentas e consecutivos regimes totalitários. E no fundo é esse e centro da questão: Caetano foi, antes e depois de 64, e continua sendo, um sujeito de esquerda crítico da esquerda. À altura de 64, os sistemas totalitários em que se tinham transformado todas as experiências do socialismo real já eram conhecidos.
Schwarz insiste, ao longo do ensaio, em afirmar que Caetano se sente à vontade no atrito, mas é avesso ao antagonismo. Nessa afirmação, o termo antagonismo é valorizado, ao mesmo tempo em que é concebido unicamente como sendo aquele a opor esquerda e direita, revolução e conservadorismo. Mas são precisamente esses termos que Caetano questiona, mantendo a negatividade (o tropicalismo, como Schwarz o reconhece, é “francamente negativo”), mas recusando traços da esquerda, tais como: certo paternalismo com a experiência popular (o que ele chama de “populismo”); a obtusidade em estética (tema do célebre discurso no festival de 68), comportamento, sexualidade; e o totalitarismo que a experiência histórica mostrou ser um devir provável do espírito revolucionário (no lugar do qual ele deseja uma revolução estrutural que não cobre os mesmo brutais custos em vidas, daí hoje seu interesse por Mangabeira Unger, que procura desenhar um processo nesses termos). Que esse desejo possa ser inviável, ou mesmo ingênuo, não o lança no campo oposto. É de se perguntar se a impossibilidade de Schwarz reconhecer a legitimidade dessa crítica não acaba por confirmar a intolerância histórica da esquerda para com a diferença.
Esse debate me concerne vivamente. Considero-me um sujeito de esquerda, mas com uma forte exigência de respeito por liberdades individuais. Que o liberalismo cada vez mais demonstre o descalibre de sua balança, em que a liberdade de alguns se dá ao custo da grande desigualdade entre todos, isso não anula o fato de que a esquerda não conseguiu dar uma resposta real ao desejo de que a igualdade entre todos não comprometa a liberdade de cada um. Dizer isso não implica sair de seu campo. A recomendação de Schwarz serve a ele mesmo: é preciso distinguir “entre antagonismos secundários e principais, adversários próximos e inimigos propriamente ditos”.
Fonte: Segundo Caderno/O Globo, 2/5/2012.
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