Poucas coisas, para mim, são mais satisfatórias do que ler um artigo que gostaria de haver escrito. Reinaldo Gonçalves publicou no número 31 da Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política um artigo que alcunha de "nacional-desenvolvimentismo às avessas", a trajetória econômica do Brasil no novo milênio. Sintetiza nacional-desenvolvimentismo como um projeto "de desenvolvimento econômico, assentado na industrialização e na soberania dos países latino-americanos". Desdobra o desempenho brasileiro nas últimas décadas como um desempenho no qual a economia, as estruturas de produção, o comércio exterior e a propriedade do ativo produtivo caminharam no sentindo contrário ao projeto que animou o Brasil de 1930 a 1980.
Gonçalves, de forma rigorosa, mostra que houve redução na participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB). O Brasil perdeu participação no panorama industrial mundial. Mostra, de forma inequívoca, que o que cresce no país é o valor adicionado da mineração e da agropecuária. A política econômica foi orientada para a liberalização comercial, e o coeficiente de importações em relação ao consumo aparente cresceu de forma sistemática entre 2002 e 2010.
A participação dos manufaturados caiu no valor das exportações, e houve a queda assustadora da dos produtos altamente intensivos em tecnologia entre 2002 e 2010. Todas as indicações mostram aumento de dependência tecnológica. A diferença entre o valor de importações e bens intensivos em tecnologia, exportações brasileiras destes bens, evoluiu de US$ 19,3 bilhões em 2002 para US$ 85 bilhões em 2010.
São precárias nossas salvaguardas ante uma crise mundial que inexoravelmente produzirá mudanças
Houve uma dramática perda de competitividade internacional; aumentou a vulnerabilidade externa, houve concentração de capital e explosão da lucratividade dos bancos. A rentabilidade "lucro/patrimônio líquido" dos 50 maiores bancos no Brasil é de 17,5% ao ano entre 2003/10.
Enquanto isso, a rentabilidade das 500 maiores empresas industriais foi de 11% ao ano. Brasil e Turquia são os dois países que têm os mais elevados custos de dívida pública nas 24 principais economias do mundo. Nestes países, custo médio da dívida é de 4%, enquanto no Brasil é de 8,6%. A relação entre pagamento de juros de dívida pública e do PIB no Brasil apenas é superada pela Grécia, sendo que a média dos 24 países é 2%, enquanto que a brasileira é 51%. Quem quiser conhecer em detalhe, leia este artigo.
São corretas as advertências que os dirigentes da política econômica estão fazendo aos bancos privados, porém claramente insuficientes. O ministro Guido Mantega advertiu no Fundo Monetário Internacional (FMI) que "o Brasil fará de tudo para impedir" o ingresso de capital de curto prazo especulativo. Porém, anunciou que não descarta o controle de capitais voláteis. Isso se faz sem advertência. É correto baixar juros; aumentar a competição dos bancos públicos; barrar capitais do exterior que se nutrem no nosso juro excessivo; tocar para frente o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Porém, tudo isso chega a conta-gotas e de forma tímida. Em um cenário em que a crise mundial se desdobra na Europa, há redução do crescimento da China (o FMI advertiu que a alta das commodities será interrompida), não se deve cutucar a onça com vara curta. São precárias as salvaguardas brasileiras ante uma crise mundial que inexoravelmente produzirá mudança de sinal no balanço de pagamentos brasileiro. Há um discurso eufórico que desconhece vulnerabilidades. Nas palavras de Gonçalves: "É visível a crescente vulnerabilidade externa estrutural brasileira em função do aumento do passivo externo financeiro".
A Argentina expropriou a YPF. Luiz Carlos Bresser-Pereira publicou na "Folha de São Paulo", no dia 23, um brilhante artigo: "A Argentina tem razão". A mídia internacional chegou a falar "de um tribunal internacional". 62% dos argentinos apoiam a medida. O FMI declarou que a matéria é de soberania. Não mergulharei em detalhes sobre a escandalosa privatização da YPF feita pelo neoliberal Carlos Menem. É incrível nenhum tribunal internacional ter se pronunciado sobre a auditoria externa que "escandalosamente" subestimou (para baratear) o patrimônio estatal argentino. Bresser-Pereira mostra a competência do governo argentino nessa medida.
Diz: "Não faz sentido deixar sob o controle estrangeiro um setor estratégico para o desenvolvimento do país". Se a recuperação pela Argentina de um ativo estratégico gera tal reação, nós brasileiros deveríamos, de forma inequívoca, nos aliar ao país irmão. Argentina solicitou à Maria das Graças Foster, presidente da Petrobras, que o Brasil aumentasse sua participação na produção de petróleo na Argentina de 8% para 15% (a principal razão da expropriação foi a medíocre atuação da Repsol em produção de petróleo na Argentina). Além das óbvias implicações no balanço de pagamentos, a Argentina, um país de clima temperado, necessita manter suas residências aquecidas no inverno, lhe é vital aumentar sua disponibilidade energética. Desconheço detalhes, mas pelo menos uma empresa chinesa foi convocada pela Argentina. Nesta questão, o Brasil não deveria vacilar em apoiar o país irmão.
A política de outorga de lotes nas reservas brasileiras, e principalmente concessões no pré-sal, é para o Brasil um erro estratégico. Sei que durante o governo Lula e no atual o Brasil conseguiu colocar um brasileiro no 6º (ou 8º) lugar na lista de maiores fortunas mundiais. O interessante é que esse salto aconteceu sem a produção de nada, apenas metamorfoses patrimoniais consagradas pela valorização de ações do empreendedor vendidas a capitais internacionais. Faz um estranho contraponto com a correta elevação do poder de compra do salário mínimo real colocar uma fortuna brasileira baseada em valorização de lotes de petróleo no pódio dos grandes patrimônios individuais. Façamos votos para que no futuro não tenhamos que enfrentar a maldição de país primário-exportador de petróleo. Ainda é tempo para não expor a soberania de um país que, no Atlântico Sul, pode vir a ser "dono" da terceira maior reserva mundial de petróleo. Há enorme risco geopolítico nessa matéria.
Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.
Fonte: Valor Econômico
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