Cada coisa no seu devido lugar. É bem razoável a hipótese defendida pelo analista político Luiz Inácio Lula da Silva, em artigo publicado pelo New York Times, de que os protestos que ecoam em todos os espaços do território nacional não sejam uma "rejeição da política", para acrescentar que "sem partidos políticos não pode haver nenhuma democracia verdadeira". Tem razão. Afinal, os atos que chegaram a levar às ruas cerca de 1 milhão de pessoas se impregnam dos valores essenciais da política - a defesa da polis, o bem-estar da coletividade - e constituem prova inequívoca da vitalidade do nosso sistema democrático. Daí a fechar com a ideia de que a onda de manifestações decorre, em grande parte, dos sucessos sociais, econômicos e políticos alcançados na última década, ou seja, pelo PT, configura-se um rematado exagero.
Como foi exaustivamente demonstrado - até por farta cobertura de imagens de passeatas -, não foram universitários vindos de famílias pobres os que primeiro acenderam as faíscas da fogueira social, mas grupamentos jovens da classe média, ao entorno de um movimento pela redução de tarifas de ônibus. Embora se possa dizer que as marolas formadas pela pedra jogada no meio da lagoa, ao chegarem às margens, atraíram os segmentos jovens da base da pirâmide.
A tese contrária à abordagem do ex-presidente ampara-se no argumento de que os ganhos obtidos pelos contingentes periféricos - a partir dos 30 milhões de brasileiros que ingressaram na classe C - não tiveram contrapartida nos núcleos de classe média tradicional, que viram expandidas as demandas nas estruturas de serviços públicos, sob a malha deteriorada dos sistemas urbanos, principalmente nas metrópoles. Se milhares de jovens da classe média emergente passaram a ter carro, a viajar de avião e, consequentemente, a exigir mais, como lembra Lula, outros milhares da classe média tradicional "chutaram o pau da barraca" que acumulava suas demandas reprimidas. Vale lembrar que o poder de irradiação de ideias obedece a um movimento centrífugo, que costuma sair do meio para as margens. Também nascem no meio da pirâmide as locuções mais ácidas sobre deficiências nas áreas dos serviços públicos, o desprezo aos políticos e sua falta de compromissos, a par de uma cognição mais aguda sobre a corrupção generalizada. Donde se aduz que a abrangente movimentação social que se espraia pelo País foi aberta no centro da sociedade, não nas laterais, como quer fazer parecer o líder maior do PT.
O ensaio de democracia direta a que temos assistido não é, portanto, uma invenção da década petista, mas o desdobramento natural de uma crise que se arrasta há décadas e tem como epicentro as fendas sociais abertas pela democracia representativa. Neste ponto é oportuno retomar os significados múltiplos dos protestos. Se não há uma rejeição à política, entendendo-se que sem ela fenecem os sistemas democráticos, carregam eles monumental repúdio à classe política. É inegável que no pano de fundo das mobilizações de massa se lê um discurso contra formas obsoletas de operar a política, compromissos não realizados, metas inalcançadas, educação defasada, violência desmesurada, equipamentos sucateados nos estabelecimentos hospitalares, ao lado de carimbos com os conceitos que mancham a fisionomia da representação: nepotismo, personalismo, caciquismo, fisiologismo. Eis o pântano de mazelas que os partidos costumam semear.
Lula diz que o PT precisa aprofundar a renovação e "recuperar suas ligações diárias com os movimentos sociais e oferecer novas soluções para os novos problemas". Tem razão. Reconhece que o partido se embalou na névoa moral que suja a imagem dos partidos, principalmente os grandes e médios. Ademais, o descalabro da esfera política ganhou na era petista forte impulso com a entronização do mensalão no altar parlamentar. No acervo de feitos (e desfeitos) do PT, não há como apagar essa mancha, que, aliás, pode respingar em outros entes, como o PSDB mineiro.
Líderes e partidos procurarão internalizar as lições que as ruas oferecem? Ou imaginam que daqui a pouco, passado o calor das primeiras horas, as ondas que correm pelas avenidas de grandes e médias cidades tenderão a refluir? Se assim pensam, cometem um erro comum ao agente político: achar que as coisas cairão no baú do esquecimento. Esquecem que o copo transbordou. Atingimos o "ponto de quebra". O País começou a fazer uma caminhada sem retorno. O povo quer dar um basta à empulhação.
Ontem era um povo descrente como um rio seco, sem esperança como uma árvore desfolhada, sem viço e com a cor das coisas mortas. Hoje são grupos que se mostram ativos, vivos, navegando nas águas caudalosas das mobilizações. Exibem vivacidade, dinamismo, determinação. Percebem que podem mudar o rumo das cidades e de sua própria vida. É a vibrante ascensão do que o sociólogo francês Robert Lattes chama de "autogestão técnica". Significa que as pessoas sabem o que desejam, o ponto de chegada e os meios necessários para alcançá-lo. A expressão ganha força: o povo é dono de seu nariz. No contraponto, a imagem também popular é a de que o tempo do "Maria vai com as outras" dá adeus, fechando o ciclo da política de oportunistas.
São esses alguns sinais que haverão de contribuir para a formação de um perfil político mais atinente ao espírito do tempo, isto é, capaz de atrelar a locomotiva da ética aos vagões do trem da política. A chama ética poderá iluminar as reformas fundamentais que a sociedade reclama, a começar da reforma política. O Brasil clama por partidos e agentes que desfraldem a bandeira de uma sociedade mais convivial. Sob o lema de um Estado muito perto da Nação.
* Jornalista, professor titular da USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
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