Em 25 anos de democracia, os banidos e os cassados foram reabilitados, mas a Jango foi imposta uma espécie de morte política. É justo que volte com honras de chefe de Estado
Jango, o presidente João Goulart, volta a Brasília depois de amanhã, 49 anos depois de sua deposição pelo golpe de 1964. Volta morto, mas como chefe de Estado, para que seus despojos sejam examinados em busca de provas de que foi eliminado pelos militares ou pela Operação Condor. Será o terceiro dos três voos épicos que Jango fez rumo a Brasília. Em 1961, chegou à capital depois de perambular 13 dias pelo mundo, até que lhe fosse garantida a posse como sucessor legal de Jânio Quadros, que renunciara. Em 1º de abril de 1964, voou de Brasília para o Rio amadurecendo a decisão de não resistir militarmente. Soubera que os Estados Unidos já tinham uma frota na costa brasileira. Ele tinha popularidade de 76%, segundo o Ibope, mas não queria ver sangue correndo numa guerra civil.
Passaram-se 25 anos da restauração democrática, os banidos e os cassados foram reabilitados e muitos voltaram à política, mas a Jango foi imposta uma espécie de segunda morte: o esquecimento, o ostracismo histórico. Quantas obras públicas existem no Brasil com seu nome, por exemplo? De sua origem, trajetória e queda, Luiz Carlos Azedo falou com propriedade Nas Entrelinhas de ontem. Fiquemos, pois, na importância dos exames pedidos pela família e pela Comissão da Verdade, e na carga simbólica da recepção com honras de chefe de Estado, determinada pela presidente Dilma Rousseff para o resgate da memória e do próprio papel de Jango. As dúvidas sobre a causa de sua morte, em 6 de dezembro de 1976, estendem-se às mortes de Juscelino Kubitscheck, quatro meses antes, em 22 de agosto, e de Carlos Lacerda, em 21 de maio de 1977. Ou seja, em menos de um ano, mortes mal explicadas livraram o regime dos três líderes civis mais importantes do pré-64. Embora Lacerda tenha apoiado o golpe, os três haviam posto as diferenças de lado, formando a Frente Ampla contra o regime. Esse movimento e a resistência armada de grupos de esquerda foram usados como pretexto para a edição do AI-5 e o mergulho na completa ditadura. Pode ser que os exames nada provem, como disse João Vicente Goulart, filho de Jango, à Carta Maior: “Se temos todos esses indícios, por que teríamos de descartar a possibilidade de que, na verdade, ele foi vítima de um crime?”.
Depois da exumação, amanhã, em São Borja (RS), Jango voltará a Brasília. Não mais acossado, mas para uma justa ressurreição como protagonista. Em 1961, depois que a direita civil e militar vetou sua posse, ele saiu da China, onde estava em viagem oficial, fez escala em Paris, seguiu para Nova York, de lá, para Buenos Aires, e depois, Montevideo. Em Porto Alegre o governador Brizola articulava a cadeia da legalidade e a resistência militar. Em Brasília, Tancredo Neves negociava a saída pelo parlamentarismo, que Jango acabou aceitando, para desgosto de Brizola. Foi um Jango humilhado pelos militares que voou para Brasília no dia 7 para tomar posse sob o parlamentarismo, que depois revogaria vencendo o plebiscito de 1962.
Que as armas não falem
Mais dramático foi o voo de 1° de abril de 1964. Na noite da véspera, o general Mourão Filho e sua tropa golpista haviam marchado de Minas para o Rio de Janeiro. Jango passou a noite no Palácio das Laranjeiras, no Rio, acreditando ainda que seu “dispositivo militar” abortaria o golpe, embora as tropas de Lacerda já se movimentassem perto do palácio. O poder lhe escapava, o dispostivo falhara. No meio da manhã, ele embarcou para Brasília, deixando alguns ministros atônitos no Palácio das Laranjeiras. Até hoje, os historiadores se perguntam o que ele veio fazer aqui, onde não poderia resistir. O jornalista Flávio Tavares, com Fernando Pedreira, do Estadão, e Graça Dutra, do Correio, o viram arrumar os papéis no gabinete. Tranquilo e lacônico, recorda Flávio, ele disse: “Vou instalar o governo no Rio Grande do Sul. Acabo de falar com o comandante do III Exército”. Tratava-se do general Machado Lopes, que prometia resistir. Em verdade, Jango soubera por San Thiago Dantas, seu ex-chanceler, que a frota americana já estava na costa brasileira para apoiar o golpe e reconhecer o novo governo. As reformas, o governo, tudo estava perdido. Ligou para Maria Thereza, na Granja do Torto, e pediu que seguisse na frente com os meninos. O avião estava esperando. No fim do dia, outro avião sobrevoou rapidamente a cidade, com as luzes piscando, antes de rumar para o Sul. Jango partia como chegara: acuado. Mantendo, porém, o que dissera em 1961, em Porto Alegre, antes da posse: “Que Deus me ilumine, que o povo me ajude, que as armas não falem”. Estando ainda no Brasil, o Congresso declarou a Presidência vaga e abriu caminho para a ditadura. É justo que esta semana volte a Brasília como presidente. É oportuno que os jovens que desfrutam a democracia saibam o quanto ela custou.
A nova tentativa
Na coluna de domingo, abordei rapidamente a proposta de emenda constitucional da reforma política apresentada pela comissão mista criada pelo presidente da Câmara. Ele promete que o texto será votado até abril, para vigorar apenas em 2018. Talvez, com tanta antecedência, seja possível aprovar tais mudanças, que começam pela adoção do voto facultativo. Outra mudança já comentada é a do sistema eleitoral, a forma de escolher deputados, proposta por Marcus Pestana (PSDB-MG) e acolhida pela comissão. Nem distrital nem lista fechada. Cada estado seria dividido, segundo o tamanho e a distribuição do eleitorado, em macrorregiões eleitorais. Isso pode melhorar o vínculo eleitor-representante. Haveria também uma cláusula de desempenho para os partidos, pela qual só terão acesso a tempo de tevê e a Fundo Partidário os que obtiverem 3% dos votos nacionais e 3% concentrados em nove estados. “Em 2002, essa exigência subiria para 4% e, em 2026, para 5%. Teríamos então a fórmula da Alemanha.” Haveria também uma barreira individual: candidato que não obtiver 10% do coeficiente eleitoral não se elegerá só com as sobras dos puxadores, como Tiririca, que arrastou três ou quatro deputados em 2010. Um bom achado. Na próxima coluna, falaremos da proposta, também inovadora, de financiamento de campanhas.
Fonte: Correio Braziliense
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