Nem a violência do Poder justifica protesto violento
A discussão da violência na política não é trivial. Ela se justifica e pode até ser um imperativo moral, quando se vive numa ditadura desumana. Revoltar-se contra o nazismo era o que deveria fazer qualquer ser humano decente. Mas a violência deixa de ter cabimento quando há Estado de Direito e, além do mais, democrático, com o governo eleito pelo povo - como hoje acontece no Brasil.
Mesmo assim, há setores da opinião que defendem ou desculpam o uso da violência. Sua principal justificativa é a violência da polícia. Creio que todos temos visto as listas de pessoas mortas ou desaparecidas em função da violência policial. Mesmo as UPPs do Rio de Janeiro, que têm sido apresentadas como um sucesso em matéria de segurança pública, portam em seu passivo o desaparecimento do pedreiro Amarildo. E é exemplar o recente vídeo de Fábio Porchat, em que o humorista - vestido à paisana, com um amigo idem - aborda uma viatura da polícia com a truculência que muitos policiais empregam contra os moradores da periferia. Ele nos deixa com um riso amargo, porque por trás da graça sabemos que há uma dura verdade. E pior, sabemos que Fábio Porchat foi ameaçado de morte, justamente por esse vídeo, razão pela qual lhe presto aqui minha solidariedade, embora não o conheça pessoalmente.
Mas quer isso dizer que a violência contra a polícia, contra "o Sistema", seja legítima?
Penso que vale a pena lembrar aqui o padre Hélder, como foi conhecido ao longo da vida aquele que passou seus últimos anos como arcebispo de Olinda e Recife, homem franzino que foi uma das lideranças morais do País em tempos da ditadura militar. Pois bem, ele sempre condenou o recurso à violência, que na década de 1970 se chamava luta armada.
Sua explicação era simples. Dizia ele que há uma violência número 1, que se constitui no uso constante da força bruta - e de instrumentos legais mais discretos - contra os mais pobres. O Brasil, como muitos países, tem esse pecado de origem. Ele não aparece só no desaparecimento de Amarildo. Está presente até quando dois professores, no alto da hierarquia universitária, trocam mensagens pelo Facebook ridicularizando um suposto pobre que está na sala de espera do aeroporto. "Aeroporto virou rodoviária", diz uma; "acabou o glamour do avião", responde o outro. O irônico é que o alvo da zombaria na verdade é advogado e procurador de uma cidade mineira - não é um pobre. Mas os posts insensatos mostram que a maioria da população não é bem-vinda em lugares, como aeroportos e shopping centers, que pertenceriam às classes média e alta. Isso é violência, embora ela somente se torne física se e quando chegam os seguranças para enxotar o mal-vindo.
Dos que recorreram à luta armada, contra a violência número 1, no começo da década de 1970, dizia dom Helder que praticavam a violência número 2 - que ele também condenava. Esses atacavam os sustentáculos do poder: militares, policiais, torturadores. Eram chamados de terroristas, o que está errado - terroristas difundem o terror, indiscriminadamente, no meio de populações civis. Mas o arcebispo era contrário também a essa violência. Lembro ouvi-lo, na TV francesa, dizendo que bom no uso das armas é quem já pratica a violência, a número 1. Vai um estudante de Ciências Sociais vencer no tiro um atirador do Exército? Sem chance! Ele apenas se oferece, tolamente, para lutar no terreno em que certamente perderá para o inimigo. Pois é na palavra que funciona melhor a oposição à ditadura, o movimento que luta contra "a desordem estabelecida", para usar o termo do existencialista cristão Emmanuel Mounier. Em suma, os autoritários são melhores na violência, especialmente armada, e os democratas na palavra. Então, usemos a palavra!
Para mim, este argumento é decisivo. Se somos bons de discurso, esta é nossa arma. Faria exceção para o nazismo, que só caiu devido a uma guerra - mas vejam que o comunismo caiu, não em campos de batalha mas devido ao descontentamento dos cidadãos, expresso em falas clandestinas que finalmente se tornaram públicas. A palavra é poderosa.
Helder Câmara passava então à violência número 3. Esta era a resposta do Establishment armado à violência número 2, à violência que se dizia "do oprimido" (e que, no caso do Brasil, foi obra de uma minoria, sem conseguir o apoio - justamente - dos oprimidos). As ditaduras, alegando lutar contra um terrorismo que por sua vez reagia à suspensão da democracia, faziam a escalada da agressão. Operação Bandeirantes, esquadrão da morte, tortura foram exemplos dessa violência terceira. Felizmente, isso acabou, ou na verdade, reduziu-se muito. E baixou graças a muita luta, quase toda ela civil e desarmada.
O Brasil hoje é uma democracia. Tem falhas. Perdura uma grande exclusão social, apesar dos avanços dos últimos anos. Além disso, os serviços que o Estado deve à sociedade são prestados com pouca qualidade, o que tem a ver com ineficiência, más prioridades, corrupção e, sobretudo, pouco peso político da cidadania. Mas a cultura e as instituições democráticas que construímos permitem que a luta se dê pela palavra. Já a violência física põe fim a toda conversa, toda negociação, toda comunicação. Ela vai, portanto, na direção oposta do que alega quem a defende nas ruas. Impede a discussão. Impede a própria esquerda de promover campanhas políticas em prol de uma mudança política e social. É justamente na Colômbia, o único país sul-americano que tem uma guerrilha ativa, que é maior a rejeição popular à esquerda. Será coincidência? O uso da violência física deve sempre ser exceção, nunca a regra.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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