O golpe de 1964 mudou a vida de cada um de nós e a percepção que tínhamos dela. Nunca mais fomos os mesmos
- O Globo
Não sei se já falei sobre isso, nesse canto de página. Mas a vasta “celebração” do golpe de 1964 na imprensa e na televisão, nesses últimos dias, me deu vontade de voltar àquele tempo. Só na memória, é claro, que no real aquilo não pode de jeito nenhum acontecer de novo no Brasil. Nunca mais.
O golpe não teve apenas consequências públicas, como bem analisaram por esses dias nossos melhores ensaístas em artigos e livros. Ele mudou a vida de cada um de nós e a percepção que tínhamos dela. Nunca mais fomos os mesmos.
Logo depois do Ato Institucional nº5, em 1969, o sufoco me fez deixar o Brasil num exílio voluntário. Depois de passar uns meses na Itália sem encontrar trabalho, me mudei para Paris onde, graças a amigos meus do cinema francês, arrumei um biscate na televisão local (ainda estatal). Como as notícias vindas do Brasil continuavam péssimas, estava difícil decidir entre a esperança e o medo. O ruim do exílio não é onde a gente está, e sim aonde a gente não pode ir.
Aqueles eram tempos difíceis, sim. Mas que tempos não o são? Como é mesmo muito difícil viver, em qualquer época que seja, temos sempre a impressão de que estamos vivendo o pior momento da história da humanidade. É isso que gera a principal narrativa de conservadores e progressistas.
Como escreveu Lévi-Strauss, para os conservadores a idade de ouro está num passado cujo desaparecimento lamentamos com nostalgia. Para os progressistas, a idade de ouro está no futuro, em nome do qual devemos sacrificar o presente. Nenhum dos dois se dá conta de que a idade de ouro é o tempo que nos foi dado viver.
Tenho a impressão de que Shakespeare que, ao lado de Dostoievski e Proust, escreveu quase tudo que se precisa saber sobre a humanidade, percebeu esse equívoco. Desconfio disso pela referência a “tempos difíceis” em várias peças passadas em tão diferentes épocas e lugares. Ela está em Falstaff, quando reclama do tempo em que vive (“Que tempos são esses?”); no Príncipe de Verona, que acusa o tempo presente pela tragédia de Romeu e Julieta; no Hamlet atormentado, para quem “nosso tempo está fora do eixo”.
Detesto esse tipo de acusação contra o pobre do tempo indefeso. Costumamos tratar nosso tempo como terminal, porque incorporamos a ele nossa própria finitude. Mas existem situações excepcionais em que os motivos são evidentes e a reclamação é pertinente. Uma guerra, um desastre natural, uma peste, um regime de opressão. Esse último nos justifica dizermos que, para minha geração, os anos entre 1964 e 1985 (sobretudo os que vão do AI-5 à Lei da Anistia) foram os piores de nossas vidas. Um tempo que gostaria de não ter vivido.
Para vivermos um tempo como aquele, devemos estar preparados para admitir que tudo em nossa vida estará impregnado pelo desastre e pela tragédia que ele provoca. Ainda sobre Shakespeare e Hamlet, o poeta Hans Magnus Enzenberger, um dos autores que andamos descobrindo durante aqueles anos de tantas descobertas, dizia que em toda dramaturgia há sempre um protagonista e um ou mais antagonistas, como está convencionado desde os gregos. Menos em Hamlet, onde o antagonista do herói é o próprio mundo.
Ali, o obstáculo do herói, a razão de sua loucura, dor ou tormento, é o mundo em que vive. E, como Hamlet se debate contra o mundo, não tem tempo para viver. Jan Kott, em “Shakespeare, nosso contemporâneo”, o melhor texto sobre Hamlet abordado como um herói dos anos 1960, diz mais ou menos a mesma coisa.
Não estou me referindo somente à repressão, à censura, à dor da perda de tantos amigos, de gente que admiramos. Mas também à vida em permanente temor, à angústia cotidiana, à renúncia compulsória ao gozo, à pressão do pequeno terror interno, à extrema solidão de cada um separado dos outros. Uma solidão que acabaria na praga de radical e generalizado individualismo, a única saída que pareceu nos enobrecer.
As pessoas de minha geração se drogavam para escapar do horror à nossa volta, para criar um mundo de fantasia que as protegeria da caretice e da cruel opressão, do inaceitável em torno de nós. A droga era uma resistência suicida ao mundo em que não queríamos viver. Hoje, a impressão que tenho é que as pessoas se drogam para melhor se integrarem ao mundo bárbaro e hipócrita, em que o terror é agora administrado pelas bolsas e pelos bancos.
A vida não é mesmo fácil de ser vivida, às vezes é até compreensivo que nos julguemos vivendo o pior dos tempos. Mas há momentos, como nos anos de trevas da ditadura, em que a vida parece perder seu sentido. Ou nós perdemos o gosto de usufruí-la e apenas tratamos de sobreviver. Como se sobreviver fosse suficiente e Sartre tivesse razão ao se referir à superioridade do ratinho vivo sobre o leão morto. Ou, ainda melhor, como a barata repelente na prisão de “Glória feita de sangue”, de Stanley Kubrick, que sobreviveria a Ralph Meeker se Timothy Carey não a destroçasse com a palma da mão.
Cacá Diegues é cineasta
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