• Musical em cartaz no Teatro João Caetano já é um dos sucessos da temporada
Debora Ghivelder – O Globo
RIO — O ritual se repete a cada espetáculo. Antes de entrar em cena para viver Abelardo Barbosa em “Chacrinha, o musical”, Stepan Nercessian diz que conversa com o apresentador, morto em 1988, de câncer, aos 70 anos. No camarim, o ator enfia a cartola de Velho Guerreiro na cabeça, os óculos de armação grossa, olha-se no espelho e sussurra algo como: “Chacrinha, peço sua permissão para mais uma vez interpretar você”. Depois, substitui a cartola pelo chapéu do palhaço — personagem meio onírico, fruto da imaginação do jovem Abelardo, vivido por Leo Bahia. Stepan é o palhaço durante quase todo o primeiro ato, que lembra a trajetória do comunicador do Nordeste ao Rio e o início de seu sucesso. É só na última cena dessa primeira parte que ator e cartola se reencontram. E Stepan vira Chacrinha. Por um breve instante.
A semelhança surpreende o público.
— É uma reação diferente de tudo o que senti até hoje de uma plateia. Primeiro, é o espanto. Depois, os aplausos. Daí, a cortina fecha e você ouve um burburinho danado, é arrepiante — conta ele, 61 anos de idade e 46 de profissão.
No mês passado, o crítico de teatro do GLOBO, Macksen Luiz, sentenciou: “Stepan Nercessian, em atuação mimética, revive na voz e no gestual o magnetismo do Chacrinha”. Dias antes, apos assistir ao espetáculo, o colunista Arnaldo Bloch escreveu: “Em um musical de altos e baixos, irregular e algo confuso (...), o fenômeno, mesmo, para valer, é a ressurreição de Chacrinha no corpo de Stepan Nercessian”.
Para quem acredita, o Velho Guerreiro deve ter ouvido o apelo que o ator faz no camarim. Desde que estreou, em 14 de novembro, o musical escrito por Pedro Bial e Rodrigo Nogueira e dirigido por Andrucha Waddington vem se firmando como um dos maiores sucessos do verão que se anuncia. O Teatro João Caetano está ocupado em praticamente todos os seus 1. 143 lugares a cada récita (de quinta a domingo, com duas sessões aos sábados), por uma gente ávida para ver o apresentador balançando a pança e dando as ordens no terreiro, com cantores, calouros, jurados, chacretes, buzinadas e bacalhau (cenográfico, naturalmente). E é o que se vê ao longo de todo o segundo ato.
“marxista, kardecista e cristão”
No final, o público cerca o ator. Há quem afirme que ele incorporou o espírito do Velho Guerreiro ou que o apresentador está também presente no palco. Stepan, que se define como “marxista, kardecista, cristão”, lembra que há uma força muito grande em torno do personagem.
— Existem milhões de imagens, registros da voz, que andaram pelo ar e ficaram na memória afetiva das pessoas. Isso está grudado dentro delas de uma maneira tão viva que quando se materializa no palco tem esse impacto — diz.
Ao mesmo tempo, o ator não nega uma ou outra coincidência estranha. Afirma que compôs o personagem sem estudar o apresentador. Não queria correr o risco de imitar Chacrinha. Só reviu gravações antigas faltando uma semana para a estreia.
— Foi então que eu percebi que muitos gestos que achei que estava criando, improvisando, ele fazia mesmo. Vai ver estava no meu inconsciente, né? — diz Stepan. — O Leleco (Barbosa, filho do apresentador) disse que cada vez que vai me ver eu estou mais parecido com o pai dele. E que faço certos gestos que o Chacrinha só fazia em casa.
É claro que nem tudo foi improviso. O jeito de andar, por exemplo, surgiu da observação dos vídeos. Já para a semelhança na voz, o ator dá outra explicação:
— Eu tenho a minha estragada pelo cigarro. E o Chacrinha também fumou — diz o ator, que chegou a pensar em largar o vício para aguentar o tranco das duas horas de espetáculo, plano que não foi adiante. — O pessoal já sabe. Quando digo que vou fazer aquecimento vocal, é porque vou fumar.
“Estou fazendo Hamlet”
Stepan sabe que acertou ao aceitar o convite de Andrucha Waddington para encarnar o Velho Guerreiro. Quebrou um jejum autoimposto de mais de dez anos distante dos palcos. Depois de fazer com Maria Zilda “Segundas intenções”, decidiu que só atuaria no teatro em um caso especial.
— Não tem ator que não queira um grande personagem. Por isso todo mundo monta “Hamlet”. Estou fazendo Hamlet. Ser ou não ser. A dúvida tá lá. Ser o Chacrinha ou ser Abelardo.
Prestes a deixar de vez Brasília, já que seu mandato de deputado federal (PPS) termina em janeiro e ele não foi reeleito, Stepan está com o vento a favor na carreira artística. Gravou, em 2014, o seriado “Magnífica 70” para a HBO, com direção de Cláudio Torres, que vai ao ar em meados de 2015, e segue com “Chacrinha” no Rio até março. Depois vai para a temporada em São Paulo e começa a rodar, em abril, “Os Penetras 2”, com o mesmo Andrucha que dirige o musical. Da política, promete, vai dar um tempo:
— Minha natureza não permite abdicar de mim para exercer alguma coisa. O Brasil vive um momento plebiscitário. Desapareceram os 50 tons de cinza. Agora ou você é homofóbico ou você é gay. Ou é isso, ou é aquilo — afirma Stepan, que aponta a irreverência autêntica de Chacrinha, e seu universo politicamente incorreto, como trunfos na conquista do público. — Acho que fica todo mundo aliviado de ouvir “Maria Sapatão” e “Cabeleira do Zezé”, numa boa.
Outro acerto, acredita, é conseguir transformar a plateia do teatro em um público de auditório. O espectador vibra mesmo com o clima de programa que conta com calouros muitas vezes ilustres: atrizes como Maria Clara Gueiros e Soraya Ravenle já subiram ao palco para cantar, por exemplo. Xuxa e Byafra fizeram participações como eles próprios.
— No segundo ato não faço teatro. Faço televisão — brinca Stepan.
Falando em televisão, ele roda e avisa:
— Neste domingo vamos levar a peça ao Faustão. O Chacrinha vai estar de novo na TV.
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