- O Estado de S. Paulo
Há coisas de que não se gosta mas que devem ser ditas. Até para que se deixem de lado algumas ilusões paralisantes. Esforços para entender o que se passa num país só fazem sentido se conseguirem captar a realidade, não as fantasias que os homens fazem sobre ela, seus sonhos ou suas ideologias. Como sempre é muito difícil separar uma coisa da outra – o real daquilo que é interpretação do real, a análise fria, do desejo –, tudo o que os homens escrevem sobre a vida está sujeito à crítica, pode ser rejeitado como sendo uma tentativa a mais de interferir na dinâmica dos fatos, não somente de interpretá-los.
Deste ponto de vista, pouco servem as adjetivações e a troca de acusações de que costumam ser pródigos os atores políticos. Oposição e situação têm suas razões e tendem a apoiar-se nelas para se desgastarem reciprocamente. Nunca fazem propriamente análises, nem reconhecem com serenidade e argúcia os problemas com que estão a lidar. Não deveríamos esperar de um governo que reconheça suas falhas, seus erros ou suas limitações: nenhum deles jamais fará isso. Não deveríamos esperar que uma oposição que esteja a jogar o jogo – ou seja, que vislumbre a perspectiva de chegar no poder – faça análises abrangentes. Ela teria de ser antissistema para fazer isso, e teria de ter força política e generosidade cultural, não somente um amontoado de palavras flamejantes na boca ou um bom lote de interesses eleitorais.
Tudo isso serve para que se possa a dizer que estamos a atravessar uma crise tão grande no país que é como se todos tivessem sido atirados para a periferia da vida, reduzidos ao silêncio ou ao tatibitate.
O caos parece tomar conta do Brasil político, impulsionado antes de tudo pela transfiguração do governo Dilma.
Estelionato eleitoral tem sido a expressão empregada para qualificar o ato: o que se jurava que jamais aconteceria – ajuste fiscal, tarifaço, corte de direitos, flerte descarado com o mercado e os grandes interesses – passou a ser a linguagem oficial do governo, sua carta de apresentação à sociedade. O novo ministério é medíocre, forjado que foi na prancheta não do “presidencialismo de coalizão”, mas da troca de favores e da busca sôfrega por sustentação parlamentar.
Não há densidade técnica (exceção nos ministérios econômicos) digna de registro, e sequer em termos políticos se pode localizar alguma liderança. A presidente, fechada em copas, pouco demonstra de vontade de coordenar seu governo, e o espectro da desgraça econômica e social começa a se materializar. O PT finge-se de morto, ou porque morto está e ainda não se deu conta, ou porque se acomodou, ou porque simplesmente não sabe o que fazer. A base aliada, PMDB à frente, é simplesmente patética. O próprio Congresso se recolheu, sob o pretexto de cuidar da eleição do presidente da Casa. Vergonhoso.
Fora da esfera governamental, o deserto só faz crescer. Onde estariam as oposições e seus 50 milhões de votos, suas bancadas revigoradas e suas promessas de combate sem trégua ao governo? Onde estaria o PSOL, que se mostrou intransigente durante as eleições e hoje sequer dá o ar da graça? E a Rede de tantas promessas, que quebrou já nos dias finais do processo eleitoral e hoje oscila entre um morno ativismo digital e o flerte com propostas vistas como passíveis de clonagem (como a experiência espanhola do Podemos!)? E o PSDB, que ameaçou decolar mas voltou à mesma condição de sempre, sem opinião, sem poder de agenda, sem propostas, em que pese controlar importantes pedaços da vida política nacional?
Poder-se-ia dizer: ora, mas as ruas estão ativas, o MPL voltou a excitar as populações urbanas e está crescendo. Será mesmo? Há combustível para isso, é verdade, mas parece faltar motor. A explosão que levou milhões às ruas em 2013 não dá mostras de que se repetirá. A “desorganização” segue igual, as palavras de ordem vivem de repetições, continua-se fuzilando verbalmente os bancos, a Globo, os coxinhas, mas não há criatividade nem particular capacidade de diálogo com os diferentes setores da sociedade. Seu olhar está focado no pequeno, no tópico, no interesse de curto prazo. Fazem-se passeatas em nome de uma política de transporte público digna do nome, mas o que sobra são efeitos da tática black-bloc potencializados pela imperícia policial, para dizer o mínimo. A sociedade olha tudo isso e não vê motivos para achar que da agitação sairá algo que a beneficie, que melhore seu cotidiano ou facilite seus deslocamentos.
Se pelo lado das esquerdas (em sentido genérico, sem maior precisão) as coisas vão mal, isso poderia significar que as direitas estão a crescer. Parte delas deu o ar da graça para pedir o impeachment da presidente, ocasião em que se pôde perceber com clareza que dali nada sairia de aproveitável. Tudo não passou de exibicionismo de momento, um espasmo de reacionarismo. Onde estariam os liberal-conservadores, aquela parte da direita que se costuma chamar de “civilizada” e que a rigor deveria ser chamada de “centro liberal”? Por que ela não fala nada e não marca posição?
Talvez porque isso não seja necessário. As circunstâncias poderiam estar a favorecer as direitas sem que para isso elas precisassem fazer muito esforço. Como se dizia antes, estão aí os democratas para fazer o trabalho da direita. Não há conservadorismo a crescer, é o progressismo que se mostra atarantado.
Pode ser. Mas se for assim, é porque a situação caminha impelida pelos fatos duros da vida, não por opções políticas ou atores organizados. O grande capital vai espalhando e consolidando sua dominação, sem se preocupar muito (irresponsavelmente) com o caos que esparrama pelo caminho. As forças vivas da nação, trabalhadores, empresários, classe média, estudantes, o povo em geral, mantém-se afastadas, entre confusas, despolitizadas e paralisadas. Ninguém pensa em pactos, ou acordos, sequer em articulações que mexam com a sociedade e incomodem minimamente o sistema político. Como o sistema não tem positividade, age-se meio que de costas para ele.
É uma visão pessimista. Não quer dizer que esteja certa nem que a situação se cristalize na direção sugerida. Mas que estamos precisando de uma sacudida democrática – algo que permita às forças vivas agitar seus andrajos e ganhar protagonismo –, isso estamos.
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Marco Aurélio Nogueira, professor de teoria política na Unesp
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