- O Estado de S. Paulo
Ao vencer a eleição de 2014, Dilma Rousseff não percebeu que a “guerra poderia estar ganha, mas que sua paz fora irremediavelmente perdida”. A presidente comprometera-se com um mundo e uma economia que não mais existiam; armara para si uma cilada política: como satisfazer o eleitor a quem prometeu direitos e recursos sem fundos e, ao mesmo tempo, reparar a economia que degringolava, num processo de gastos insustentáveis e escolhas incorretas? O crescimento minguara e os bons ventos que conduziram grande parte dos mandatos de Lula se esgotaram; à Dilma restaria o difícil ajuste e a prova (de arte) do recomeçar.
Além disso, o processo eleitoral fora muito abrasivo, no mais agudo conflito e na mais renhida disputa da jovem e incompleta democracia do país. A eleição não somou, dividiu. Criou desconfianças não apenas no sistema partidário, mas, pior, na própria sociedade. O discurso se radicalizou e a polarização que já era um transtorno para o diálogo se afigurou como irreconciliável. A campanha de Dilma estimulou o “nós contra eles”, o que pode até ser um recurso de disputa, mas requereria saber construir caminhos de volta que a presidente não soube fazer.
O certo é que inúmeras as frentes de conflito brotaram ou se consolidaram naquele processo. Mas, a tensão da disputa e a vitória eleitoral, ao que parece, comprometeram o raciocínio e o diagnóstico da presidente que não admitiu que aquela eleição demarcava também uma derrota política que precisaria ser revertida: a presidente saíra, pessoalmente, alquebrada e o país dividido. Até mesmo com seu padrinho e fiador, Lula, as relações careciam de remendos. Seria hora de reforma, antes de tudo, de mentalidade.
Mas, isto é um prodígio que requer certo dom: juntar os cacos da política; construir uma nova governabilidade, apontar para um novo projeto, reinventar-se não é coisa à toa. Gênios não existem; estadistas são raros; políticos estão escassos. Seriam necessárias incomuns – mas não impossíveis – habilidades de articulação e capacidade de comunicação para explicar e convencer que se tratava de pisar no freio e rearrumar a bagagem para seguir viagem.
Um líder político de verdade sabe que seu caráter é sempre nacional: por isso, reúne, agrupa, concilia, recompõe o todo. E Dilma teve, para isso, várias oportunidades. Mas seus discursos de vitória e de posse – ocasiões clássicas para esse tipo de operação – foram solenemente desperdiçados com generalidades, colocações laterais, provocações e triunfalismo. Em nenhum momento mencionou a oposição como legítima, sequer se dispôs ao tradicional cumprimento do adversário; tudo foi mágoa e irreverência. A presidente faz política com fígado (e os intestinos).
Em outras ocasiões, não olhou para frente; ocultou-se em sofismas. A propósito de se defender, buscou ferir o antecessor já longínquo, Fernando Henrique Cardoso – desprezando a possibilidade de um dia se ver forçada a procurar FHC. O que, de fato, ganhou com isso? Falou à sua tribo, apenas. E pavimentou caminhos sem volta. Se defender atirando tornou-se uma coisa tão chata e repetitiva quanto ineficaz. Há as tais “elites”, a “oposição”, a “mídia”… Os fantasmas de sempre? Dados de realidade. E daí? Para frente é que se deveria andar.
Mas se esse tratamento fosse exclusivo aos adversários seria apenas a negação da estadista que, de fato, não é; ressaltaria somente a inexistência de visão de longo prazo e um temperamento ressentido. Uma democracia deve estar preparada para, de tempos em tempos, suportar governantes assim. Todavia, esse comportamento se espalhou também para aliados e até inimigos íntimos: o PMDB, independente da má fama e da avaliação negativa que se lhe faça, foi tratado com ojeriza e humilhação. E mesmo Lula sentiu o distanciamento, o pouco-caso, a incapacidade de se fazer ouvir. De fato, como se imaginava, o “Volta Lula” deixou marcas, talvez, irreparáveis.
Dilma demonstra um péssimo defeito: desconhecer a força dos adversários e, ao mesmo tempo, não admitir a própria fraqueza. Fez enfrentamentos, como na Câmara do Deputados, tão desnecessários quanto desastrosos, não sabendo, após, admitir e assimilar derrotas e reconstruir vínculos. Política é também arte de engolir sapos. Ainda hoje, suspeita-se que tenha engolido Joaquim Levy apenas como concessão; não digerindo seu cardápio e não admitindo críticas ao passado. Desse modo, os sapos não descem goela abaixo. Entalam.
E é esta a impressão que se tem: um governo entalado; engasgado, comprometido, perplexo. Enrascado num sem número de frentes simultâneas de conflitos seríssimos que comprometem a visão do futuro. Um governo desajustado, carente de quadros, coordenação e liderança. Intrigado por dentro, corroído pela elevação de personalidades mais do que de dirigentes. Um governo dependente do acerto de um único ministro, Joaquim Levy, quase um estrangeiro naquelas terras; que não possui a simpatia, o carinho e a confiança de seus pares, e tem sobre si o olhar de bedel vigilante e exigente da presidente de mãos e pés amarrados.
Todavia, Dilma, menos altiva que incorrigível, segue em frente com suas verdades sem iniciativa; isolada num grupo restrito — se não de áulicos – de conselheiros desastrados que reforçam os defeitos de sua presidente, pessoalmente, bem-intencionada, mas fechada em seu labirinto, enfrentando minotauros; uns de verdade, outros de ilusão. Todos temos limites. Mas, fechar-se assim é um erro, um perigo, um desastre. A presidente precisa renovar-se; tomar a poção mágica da reinvenção; libertar-se do feitiço da obstinação errática. Isto é para ontem.
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Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
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