• O economista diz que o problema estrutural das contas públicas só poderá ser resolvido em outro governo, porque não dá para fazer pacto com os petistas
Guilherme Evelin – Época
Filiado ao PSDB, o economista Samuel Pessoa costumava fazer elogios públicos a programas dos governos do PT. Era uma voz a favor da distensão política e tentava abrir espaços de interlocução com economistas heterodoxos, com linha de pensamento diferente da dele. Samuel mudou. Um dos autores do estudo que diz que o problema da solvência das contas públicas do país só será resolvido com reformas estruturais, ele se tornou um cético quanto à possibilidade de um pacto nacional para enfrentar essa agenda. "Sou o efeito de uma campanha eleitoral sórdida e suja", diz ele.
ÉPOCA - O ajuste do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, vai resolver nosso problema estrutural nas contas públicas?
Samuel Pessoa - O Joaquim Levy está fazendo um ajuste macroeconômico cíclico. O que a gente está dizendo é que, além desse ajuste macroeconômico cíclico, o Brasil tem um problema estrutural, que é um superávit primário (tamanho da poupança que o governo deve fazer para pagar os juros de sua dívida) aquém do requerido para estabilizar a dívida pública. Para estabilizar a dívida, a gente tem de repensar o contrato social estabelecido desde a Constituição de 1988: os programas sociais, todas as decisões que a sociedade brasileira, por meio do Congresso Nacional, de forma absolutamente legítima, tomou para resolver o problema da desigualdade. O problema é que esse contrato social implica um crescimento do gasto público de 0,3 ponto percentual do PIB, todo ano, há 23 anos.
ÉPOCA - E agora essa conta não está fechando mais.
Pessoa - Por 12 anos, no período que vai de 1999 a 2011, essa conta fechou graças a uma taxa extraordinária de crescimento da receita. A receita cresceu sistematicamente em velocidade superior à velocidade do PIB real, sem que novos impostos tivessem sido criados. Mas esse comportamento da receita, muito extraordinário, entorpeceu a sociedade e os participantes do debate público para esse problema estrutural.
ÉPOCA - Seu estudo diz que agora o enfrentamento desse problema estrutural se tornou inevitável. Essa agenda vai se impor de forma organizada ou, pior, pelo aguçamento da crise. Qual é o cenário mais provável?
Pessoa - Não é possível manter um estado de bem-estar social cujos gastos crescem mais do que o PIB. Isso aconteceu nos últimos 23 anos, mas não pode acontecer sistemática e eternamente. A solução dessa crise exige que a sociedade entenda que ela tem de fazer um monte de mudanças, como a reforma da Previdência. A sociedade tem de olhar o todo e repensar esse contrato social. A dificuldade é que cada um desses itens, em que houve crescimento de gastos, são meritórios. Mas o fato de as coisas serem meritórias não significa que elas caibam dentro do nosso PIB. O problema de a gente continuar com um contrato social cuja dinâmica não cabe dentro do PIB é que a gente pode escorregar para uma hiperinflação e chegar no cenário da Venezuela.
ÉPOCA - Mas o Brasil tem instituições mais sólidas do que a Venezuela.
Pessoa - Mas a gente não é intrinsecamente melhor do que a Venezuela ou a Argentina, que está com uma inflação de 30%. A Venezuela, há 15 anos, era mais organizada do que é hoje. A Venezuela, há 15 anos, não tinha 80 homicídios para cada 100 mil habitantes, nem tinha uma inflação batendo 100% ao ano. Construiu isso ao longo de uma década. O problema é que a gente já teve hiperinflação no passado.
ÉPOCA - Esse crescimento dos gastos é resultado de um contrato social. Para desfazer esse contrato, é preciso algum tipo de pacto nacional. Oual é a chance de isso ocorrer?
Pessoa - Essa concertação política está muito difícil. O PT mentiu de A a Z e recorreu a uma agressividade contra o Armínio Fraga, a Neca Setúbal, a Marina Silva. Isso inviabiliza a concertação. Entre os políticos que não são petistas, e não só os da oposição, a leitura dessa avançada no sinal que o PT deu para ganhar a eleição é que o PT está disposto a fazer qualquer coisa para se manter no poder. Setores políticos muito expressivos estão convencidos de que o PT é um perigo para a sociedade.
ÉPOCA - O senhor concorda com essa ideia?
Pessoa - Eu nunca concordei com isso, mas começo a concordar. Olhando o conjunto da obra - a ganância em ganhar a eleição a qualquer preço no ano passado, a dificuldade de reconhecer os erros, a relação ambígua com a Venezuela -, você vê um DNA autoritário. As cicatrizes e feridas da campanha são responsabilidade do PT. Não houve simetria. A oposição manteve a temperatura normal nas disputas políticas no Brasil. O PT se dá ao direito de avançar o sinal porque o PT é um partido que se vitimiza, que diz que é perseguido pela imprensa. Sempre que alguma coisa dá errado, o PT diz que os outros são culpados. Essa vitimização petista faz com que eles se sintam no direito de usar qualquer instrumento para se manter no poder porque eles são uns coitadinhos perseguidos pelo capital. O partido que ganhou a eleição com mentira de A a Z é o PT. É ele que tem de fazer um gesto. Mas esse gesto exige um desprendimento do PT, que eles nunca tiveram em 30 anos. É um partido difícil de conversar. Não vai ser agora que eles estão acuados que esse gesto vai vir.
ÉPOCA - Mas a presidente Dilma Rousseff, ao nomear Joaquim Levy, não fez esse gesto, reconhecendo seus erros?
Pessoa - Eu acho que ela está reconhecendo, mas, em política, a conversa é importante. Dada a ultrapassagem de sinal que eles deram e a prevenção que todo sistema político tem com o PT, eles teriam de fazer muito mais.
ÉPOCA - Se um acordo está difícil, isso significa que a crise vai se tornar mais aguda?
Pessoa - É muito difícil saber o timing disso. O mundo está muito paciente com a gente. O Brasil tem instituições boas. O joaquim Levy está fazendo um bom trabalho dentro das circunstâncias. O ajustamento cíclico avançou. A gente já consegue enxergar a inflação dentro da meta em 2017. Mas você tem um problema dramático que é o da insolvência do Tesouro Nacional. Por essas questões estruturais, essa insolvência, com o tempo, piora. A solvência não é atribuição do ministro da Fazenda, é problema da sociedade liderada pelo Executivo. Não vejo espaço político para uma concertação, mas a gente tem nos próximos dois anos um mundo de juros muito baixos, e isso dá um espaço para gente. É possível que a situação vá se deteriorando, mas que a gente consiga empurrá-la com a barriga por mais três anos e meio, até a próxima campanha presidencial, sem que haja um evento extremo até lá. E aí, em 2017, a gente discute o país e elege um governo para arrumar a casa. Mas, mesmo nesse cenário, otimista, não dá para ter crescimento porque você não endereça a questão do buraco fiscal. Fica todo mundo com o pé no freio porque sabe que vai ter um ajuste de contas lá na frente, mas não sabe a natureza dele. Isso cria uma incerteza.
ÉPOCA - A pauta-bomba no Legislativo ameaça esse cenário otimista. Como vê o comportamento do Congresso?
Pessoa - O petrolão também é um obstáculo para essa concertação política. O efeito do petrolão é menos na economia e mais nas dificuldades que ele introduz para agenda da política. Ninguém sabe o que vai acontecer, e aí as agendas individuais ficam mais importantes. Mas eu espero que, com a sinalização da Standard & Poors (sobre a possibilidade de rebaixamento da nota de crédito do Brasil), os deputados entendam a situação e aprovem a desoneração da folha de pagamentos como o ministro Levy tinha mandado ao Congresso em fevereiro. Os deputados deviam fazer isso pelo bem do país. O jogo dos parlamentares é votar coisas absurdas, como o fim do fator previdenciário, e deixar que a presidente vete. Eles querem desgastar o PT por tudo que o PT fez. É um pouco a resposta que os políticos estão dando a um grupo político que escolheu transpor alguns limites da política brasileira. Eu coloco a pauta-bomba nesse contexto. Mas eu acho que eles não vão derrubar os vetos da presidente. Eu espero que não.
ÉPOCA - Esse não é um comportamento muito irresponsável, inclusive do PSDB?
Pessoa - Entendo esse comportamento, mas discordo dele. O PSDB só se enfraquece quando vota contra o seu legado.
ÉPOCA - O senhor era uma voz moderada, a favor do diálogo. Por que mudou?
Pessoa - Eu também sou efeito de uma cicatriz de uma campanha sórdida e suja. Além disso, a partir de 2009, a política econômica ficou um desastre. A nova matriz econômica é a política econômica mais malconduzida da história da República. Você pega um navio com 200 milhões de habitantes e faz invencionices, destrói uma política econômica estável que a gente ficou 20 anos construindo com dificuldade. A gente voltou para trás. A vida da minha filha vai ser pior porque essa equipe que estava no governo atrasou o país em 20 anos.
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