- O Estado de S. Paulo
Passam-se os dias e não se afrouxa o nó que nos ata a essa crise sem fim. O juiz Sergio Moro e a equipe de procuradores à frente da Operação Lava Jato, por mais que se esforcem, estão limitados à tarefa de explicar como foi possível a criação da trama macabra que nos enleia. Não têm, é claro, os poderes de Alexandre, o grande general e estadista, que, diante de um nó igualmente insolúvel que o desafiava, sacou da sua espada e o cortou num só golpe. Nem ele e menos ainda, como se vê, a alta hierarquia das corporações jurídicas. Pior, pouco se pode esperar dos políticos, boa parte preocupada em salvar o próprio pescoço, e da ocupação das ruas, uma vez que os nossos jovens, como há pouco testemunhamos, optaram por ir a elas em animados blocos de carnaval em número nunca visto anteriormente.
Estamos, então, ao deus-dará, como sempre com os olhos fitos no céu esperando por uma solução providencial, acostumados a confiar mais na fortuna, que, na verdade, nos tem sorrido com nossa história de revoluções passivas que, para o mal ou para o bem, nos têm evitado rupturas traumáticas nos momentos de mudanças, como este que agora vivemos. Não à toa, aqui não vingam os princípios de Napoleão, que diante das incertezas em batalhas cruciais optava por se lançar ao combate, uma vez que a Fortuna é mulher e, como tal, na sentença famosa de Maquiavel, de quem era fiel leitor, daria preferência aos homens audazes.
A nossa cultura política, ao contrário, tem horror ao incerto e ao risco, e se lhe é dada a opção no caso de conflitos severos, busca equilibrar os antagonismos em lugar de extremá-los – os registros históricos são abundantes, incluindo o processo de transição que nos trouxe recentemente de volta à democracia. Já em 1855 Justiniano José da Rocha, em Ação, Reação, Transação, fazia o elogio da política da conciliação que pôs fim às turbulências políticas do período da Regência, estabelecendo as bases para a pacificação política e a prosperidade que tomou curso no 2.º Reinado. A obra de Justiniano consistirá num marco nem sempre reconhecido da política de transformismo que a República, de Vargas a Lula, vai adotar do Império.
A crise atual, para além das dimensões políticas, econômicas e ético-morais envolvidas, é também, talvez sobretudo, uma crise dessa modelagem atávica de equilibrar antagonismos pela ação do Estado, levando-os, sob sua arbitragem moderadora, a uma solução de compromisso entre eles. A abertura da esfera pública à esfera privada, confiando-se a esta a realização de fins políticos de política interna e externa em nome da perseguição dos objetivos estratégicos de levar o País ao status de potência no concerto internacional, teve como resultado o abastardamento do Estado, de muitas de suas agências, como a Petrobrás, referência programática da esquerda há décadas, e de partidos políticos, principalmente os da base aliada governamental.
Mais que isso, ampliou-se o Estado no sentido de trazer para o seu interior os movimentos sociais, concedendo-lhes interlocução direta com suas agências a fim de negociarem suas demandas e seus interesses, radicalizando a política de Vargas, que se limitara à incorporação do mundo sindical. Engessada nesse abraço amigável, a sociedade abandonou-se ao pretenso tirocínio dos seus governantes, abdicando da auto-organização e da política. Espanha, Grécia, com sua emergente nova política, se animam os sonhadores, estão bem longe do alcance das nossas mãos. Os partidos estão em frangalhos, e até onde a vista alcança não há feliz novidade nesse front.
O fim de linha dessa política, sitiada num flanco pela derruição contínua dos alicerces que sustentavam sua economia, inclusive pelas novas circunstâncias da economia-mundo, e noutro pela Operação Lava Jato, que põe a nu os mecanismos perversos a partir dos quais se instalou, não parece que encontrará, pela disposição e pelas motivações das peças no tabuleiro político, um destino diverso do nosso repertório tradicional. É verdade que a recente Operação Acarajé apimenta esse quadro, mas a espada de Alexandre cabe nas mãos de juízes a julgarem a frio, sem o clamor das ruas e da maioria parlamentar? A quente, com muita pimenta, até pode ser.
Mas sempre há espaço para a política, mesmo em terrenos inférteis para ela, e já está aí a tendência a animar elementos característicos de uma dualidade de poder, sinal historicamente comprovado de situações de mudanças políticas: de um lado, o Palácio do Planalto, de outro, o Instituto Lula, ambos constrangidos a obedecer a lógicas distintas.
O Palácio do Planalto orienta-se crucialmente pela preservação do mandato presidencial até o seu término, daqui a longos três anos. Para tanto precisa governar e tomar decisões difíceis em matérias sistêmicas e de política social, pressionado como se encontra por gregos e troianos para abrir caminho à retomada do crescimento econômico. Por sua vez, o Instituto Lula, bunker das lideranças do PT, escorado em centrais sindicais poderosas, não apenas petistas, resiste a políticas de ajuste fiscal e de reformas da legislação trabalhista e previdenciária, mantendo seu foco na sucessão presidencial de 2018.
Antenas sensíveis já captaram o silencioso movimento das coisas, como as de Ana Maria Machado, que dias atrás publicou um artigo em elogio à negociação, mesma orientação política, aliás, a que o PMDB, na fala do seu presidente Michel Temer em horário eleitoral, conferiu alta voltagem. Para além do Palácio do Planalto e do Instituto Lula, há um tertius, a oposição e os muitos descontentes, que não estão surdos, muito pelo contrário, a essa movimentação. Napoleão Bonaparte, ao que parece, não teria o que fazer aqui, mas nós temos, e a crise atual é a nossa oportunidade para um recomeço com o que sobrar das ruínas que ficarem de pé.
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Luiz Werneck Vianna sociólogo, PUC-Rio
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