Há várias áreas da economia brasileira com problemas graves, como as contas públicas, mas o setor externo não é um deles. Ao contrário: o país só não afundou desde a crise de 2008 e subsequentes porque passou a ter reservas internacionais suficientes. O flanco historicamente vulnerável desapareceu com a acumulação de US$ 380 bilhões. Paulo Guedes, indicado superministro da Economia do novo governo, fez anteontem um polêmico exercício teórico, pouco recomendável para quem sequer assumiu o cargo, ao dizer que não haveria problemas em gastar US$ 100 bilhões diante de um ataque especulativo. O efeito colateral da ação, disse, seria positivo, por abater a gigantesca dívida interna.
Os argumentos de Guedes são conhecidos dos economistas - o país tem reservas em excesso e seu custo não é desprezível. Entretanto, ninguém ousou gastá-las, por bons motivos. O Banco Central sempre deu primazia à atuação via swaps, preferindo queimar reais ou ampliar (reduzir) a dívida pública em vez de diminuir seu estoque de moedas fortes. É uma herança da tempestade de crises da dívida que abateu o país em 1982 e que nunca mais se repetiu desde 2008. É um tabu escorado na precaução, mas não um dogma. Questioná-lo é saudável, desde que na hora certa.
Há reservas em excesso? Desde que a China acumulou US$ 4 trilhões e os países emergentes, após a crise asiática, seguiram o mesmo caminho de acumular dólares, o Fundo Monetário Internacional começou a avaliar o nível adequado dessa proteção. Um princípio de ação subjacente desses países é que eles passaram a reunir dólares para não ter de depender daqueles desembolsados pelo Fundo, cheios de condicionalidades politicamente venenosas. A instituição, no entanto, desenvolveu parâmetros de avaliação que são importantes, porque tecnicamente relevantes e globalmente comparáveis.
Essas "métricas" recomendam que o Brasil tenha um nível de proteção entre US$ 240 bilhões (inferior) e US$ 360 bilhões (superior), em um cálculo que considera as receitas de exportação, base monetária ampliada (M2), dívida de curto prazo e outros passivos que sinalizem riscos de fuga de recursos do país. A margem aceita de proteção é enorme porque a mensuração de potenciais riscos é extensa e incerta, e a estrutura financeira dos países varia muito. Haveria, de qualquer modo, uma folga de US$ 100 bilhões a US$ 140 bilhões nas reservas brasileiras, intervalo confortável a que se referiu Guedes.
O segundo ponto importante é o custo das reservas, cujo cálculo tem vários parâmetros. O BC aponta que em 2017 houve retorno positivo de 2,27% em dólares, em juros, 0,74% e em reais, 1,53%. A menor taxa histórica dos juros básicos domésticos e o aumento dos juros nos EUA reduziram a desvantagem do BC de manter a linha de defesa em dólares.
Com sobra de dólares, a um custo momentaneamente cadente, vale a pena se livrar de parte das reservas? Sem motivo, não. O novo ministro do governo de Jair Bolsonaro mencionou como hipótese a venda de US$ 100 bilhões, sem problemas, se o ajuste fiscal já tivesse sido executado e fosse bem sucedido. Mas é disto que se trata. Faltam medidas fortes para derrubar o déficit público, a começar pela reforma da previdência. A promessa da equipe de Bolsonaro de eliminar este déficit em um ano tem a forma de uma quimera.
Anunciar intervenções no câmbio é um preâmbulo para desastres. No caso do novo governo, a natural cacofonia de uma equipe em formação e pensatas ao calor da hora podem tornar a tarefa mais difícil. As declarações de Guedes sobre ações para conter ataques especulativos ao real vieram simultaneamente a outras, sobre dois assuntos correlatos - abertura da economia e independência do Banco Central.
Deixando de lado a hipótese de o dólar chegar a R$ 5 se os fundamentos da economia estão em ordem - que não se aplica ao Brasil de hoje -, o novo governo pretende promover uma benfazeja abertura comercial. Para que não seja muito prejudicial à indústria, além da calibragem das tarifas, é preciso que o câmbio se mantenha próximo do ponto de equilíbrio - isto é, o uso das reservas tem de ser prudente, ao deslocar a moeda para a valorização.
Se o Banco Central for independente de fato, como pretende o novo governo, um ministro da Economia como Guedes poderia no máximo sugerir uma ação com as reservas. O manejo do câmbio é atribuição do BC e ingerências externas no assunto, como ocorreu na Argentina, por exemplo, são nefastas para a autoridade monetária e destrutivas para a economia.
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