- O Globo
Desde que ficara doente, no final de 2015, Flora desenvolvia um projeto que pretendíamos produzir para ela, eu e Renata. A Nasa havia descoberto estrela parecida com o Sol, em torno da qual giravam planetas que foram batizados com letras que iam de A até não sei o quê. Flora havia se interessado pelo Planeta F do sistema que a Nasa chamou de Trappist-1, o planeta que possuía condições naturais mais semelhantes às da Terra.
Após sua primeira cirurgia, em dezembro de 2015, Flora começou a desenvolver a ideia de uma série que se chamaria “Bem-Vindo a Trappist-1 Planeta F”. Durante um tempo, ela nos dava a ler trechos do que seria o projeto, até completá-lo uns dois anos depois. Suas anotações eram cada vez mais claras e contundentes: “(Essa) é uma série em processo, onde procuraremos descobrir quem está aqui afim de sair e ir começar um mundo novo. Queremos elaborar as dificuldades pessoais dos brasileiros, por que suas vidas são complicadas e complexas, como dispõem suas esperanças num mundo completamente novo.”
Um dos trechos de seu projeto dizia: “No mesmo ano em que a Nasa anunciou a descoberta de Trappist-1, eu me curava de um câncer no cérebro. Um ano intenso, cheio de intromissões científicas dentro do meu corpo, cheio de provas da minha contemporaneidade da geração millenium. Durante o tratamento, deixei de lado o celular, os eletrônicos e tudo o que me afastava da vida agora. Queria entender por que nos afastamos e o que nos resta. Eu podia começar tudo de novo. Quem eu traria comigo? Foram dois anos de reflexão. Entendi que o começo, ou até o fim das coisas, nada mais é do que a utopia de que elas têm solução. De que de repente é possível sair desse planeta e construir um outro, com menos defeito. Reiniciar o mundo, assim como eu tive a oportunidade de reiniciar a vida.”
E concluía sua declaração de intenções: “Quem são essas pessoas que vivem aqui do meu lado? Quem são os negros, os pobres, os gays e os vizinhos? Voltei ao celular e à distância, mas não abandonei o desejo de saber o que a gente está fazendo aqui. (...) Quando o Estado se importa cada vez menos com a cultura, a gente se transforma em mil para fazer alguma coisa. Eu quero ouvir e falar sobre o tempo em que vivo, numa comunhão da farsa e esperança de que tudo pode acabar bem.”
Em 2018, depois de brilhar em Cannes como atriz de filme selecionado, os médicos constataram que o tumor no cérebro havia voltado de forma violenta. Depois de duas novas cirurgias, Flora faleceu no último dia 2 de junho, apesar do enorme esforço que fazia para sobreviver e seguir trabalhando no teatro, em novelas e em filmes. Aos 32 anos de idade. Em seu velório, Duda e Dudu, seus parceiros, leram para os amigos presentes a carta à Nasa que ela havia preparado para quando iniciasse a produção de seu projeto. Ei-la aqui.
“Dear Nasa,
Sou Flora Diegues, brasileira do Rio de Janeiro, cineasta e atriz. Desde que vocês anunciaram a existência do Trappist-1, vivo numa excitação. A existência de outro sistema solar como o nosso, a 39 anos/luz daqui, é uma mensagem de esperança e liberdade. Planetas como o nosso, quem sabe, a uma distância impossível e concreta. Desde então, tenho pesquisado sobre o assunto, apesar de completa ignorância sobre o tema, e venho pensando em como tudo isso pode virar um conteúdo para mim. Quando nos apaixonamos pelo tema, não tem como escapar.
Depois de pensar muito, entendi que o que me interessa é saber por que as pessoas querem sair do Planeta Terra, por que começar tudo de novo. Ou acabar. Quem somos nós vivendo hoje, fantasiando uma viagem para um outro planeta, para nos salvar do caos político e social em que vivemos. O Brasil não está simples. O mundo não está simples.
Minha ideia então é fazer um “teste de elenco” para Trappist-1 Planeta F. Em uma realidade hipotética, quem seriam os selecionados brasileiros para essa grande jornada. Mandarei e-mails convidando muitas pessoas para falar sobre o assunto, convocando-as para a seleção de uma nova sociedade. O que você faria em uma nova sociedade? Por que você sairia daqui? Estou muito curiosa em saber que país é esse em que estou vivendo, como vivem os pretos, os gays e o meu vizinho, como é que eles estão passando.
Esse e-mail é quase um pedido de bênção a vocês que transformaram a minha vida com uma notícia tão espetacular e tão pouco comentada. Quem sabe vocês não me ajudam com informações extras que podem mudar mais ainda minha vida. Obrigada, Flora.”
Só agora me dou conta de que o nome do astro que ela gostaria de explorar, para habitar com quem achasse merecê-lo, era o de sua inicial: Planeta F, de Flora.
Quando são os pais que morrem, nos tornamos órfãos. Mas se é o filho que vai embora, nenhuma palavra existe para classificar o pai e a mãe que o perderam. Em nenhuma língua do mundo, há um nome para registrar a síntese do que aconteceu. Nada pode ilustrar essa dor.
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