- Folha de S. Paulo
Seria o capitão Ahab um líder político enlouquecido que vive atiçando as massas?
Herman Melville —200 anos do seu nascimento transcorridos na quinta (1º)— compôs, em “Moby Dick”, uma das mais inesquecíveis aberturas da literatura universal: “Call me Ishmael”. Na tradução de Berenice Xavier, “Chamai-me Ismael”; na de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, “Trate-me por Ishmael”. (Se eu pudesse, escolheria “Me chame Ismael”.) É também uma primeira frase das mais parodiadas. Em seu romance “O Jardim do Diabo”, Luis Fernando Verissimo honrou a tradição: “Me chame de Ismael e eu não atenderei”.
O parágrafo inicial —como o livro inteiro— é grandioso. Não apenas no uso da linguagem. Trata-se de um convite à curiosidade e inteligência do leitor. Embarcar num navio, a fim de visitar “a parte aquosa do mundo”, impede que o narrador vá às ruas para “arrancar os chapéus de todas as pessoas” e se torna um substituto “para a arma e para as balas” —como se fugisse do Brasil atual.
Curioso é que a história de “Moby Dick”, a rigor, podia-se contar em 30 linhas: um marinheiro quer vingar-se do monstro que lhe comeu a perna. Mas naquelas 600 páginas cabem de tudo: sermões bíblicos, ensaios filosóficos, citações shakespearianas, glossário náutico, amor proibido, canções de convés, ritos mortuários, divagações antropológicas, reportagem de pesca, crônica de viagem e diário de bordo, romance gótico e romance de aventura.
Quando Melville morreu, em 1891, consideravam-no um escritor fracassado. Mas, em pouco tempo, o fascínio em torno da baleia se impôs. Quantos significados e definições atribuíram ao livro: conflito do homem com a natureza, combate entre o bem e mal, epopeia metafísica, sucedâneo de Deus. E o capitão Ahab? Não seria ele a encarnação em forma satírica de um líder político, enlouquecido de rancor e vingança, que vive atiçando as massas?
PS: Para celebrar o autor em seu bicentenário, poderia ter escolhido “Bartleby”. Preferi não fazê-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário